Instituições que esfrangalhei

Debate

Segundo pensamento imortalizado do sociólogo francês Auguste Comte (1798 + 1857), “a história é uma disciplina fundamentalmente ambígua, portanto passível de várias interpretações”. O revisionismo histórico, portanto, torna-se a grande ameaça ao aprendizado da Civilização com os próprios erros.

Mas por que alguns se empenham tanto em tentar reescrever a história?, perguntará o leitor menos afeito aos meandros da política. A resposta é mais simples do que parece. A história pode se tornar algoz ou benfeitora de grupos políticos e ideológicos, entre outros, décadas depois de fatos que voltam uma e outra vez, através do tempo, para atormentar ou afagar.

No Brasil, por exemplo, os estratos mais altos da pirâmide social vêm se dedicando a tentar reescrever a história sobretudo de dois períodos que guardam estreita relação com os dias atuais, o período da ditadura militar e o do governo de oito anos de Fernando Henrique Cardoso.

Por conta disso, o blogueiro que vos escreve vem lutando há anos para impedir o revisionismo histórico. No exemplo mais conhecido dessa luta, exortou cidadãos que viveram sob o tacão da ditadura militar a não aceitarem a tentativa que fez o jornal Folha de São Paulo em 2009 de extirpar o caráter criminoso daquele regime.

O jeito encontrado pelo blogueiro foi usar seu blog para convencer as pessoas a promoverem um ato público diante daquele veículo para protestar contra a sua teoria da “ditabranda”, expressa em editorial, que tentou reescrever a história afirmando que o regime de exceção teria sido “brando” em comparação com outras ditaduras sul-americanas que atormentaram o Brasil na segunda metade do século XX. Os manifestantes conseguiram arrancar um recuo do jornal em sua edição do dia seguinte ao ato.

O longo preâmbulo foi necessário para contextualizar debate em que me meti na última sexta-feira pelo Twitter com o ex-diretor de Redação do jornal O Estado de São Paulo senhor Sandro Vaia, de quem li um artigo em um blog de direita em que ele fazia acusação ao governo Lula de ter promovido em 2010 uma farra fiscal, entre outras, visando eleger Dilma Rousseff.  E, para arrematar o texto, escreveu que “Nunca antes na história deste país uma eleição saiu tão cara”.

Revisionismo histórico puro, portanto. Incomodado, e sabendo que Vaia é um tuiteiro dedicado, fui à rede social e lhe fiz uma provocação que desencadeou um debate entre nós que vale a pena reproduzir porque esclarece muito sobre o discurso da direita midiática sobre  dois períodos da história que ela precisa reescrever porque constitui uma legião de esqueletos em seus armários gopistas.

O debate teve momentos pândegos, mas foi respeitoso e abordou temas importantes da história deste país na segunda metade do século passado que não podem ser esquecidos ou deturpados, razão pela qual reproduzo a íntegra desse debate logo abaixo e, depois, faço algumas considerações adicionais.

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Eduardo Guimarães – Você diz, em seu artigo, que “nunca antes neste país uma eleição saiu tão cara como a de Dilma”. Onde você estava em 1998/1999?

Sandro Vaia – Aqui. A crise cambial foi provocada pela seqüência das crises asiática em 1997 e russa em 1998.

Eduardo Guimarães – Pergunta: saiu mais “cara” a eleição de Dilma ou a de FHC, que segurou o câmbio para se reeleger e jogou o país na crise de 1999?

Sandro Vaia – Governos são processos contínuos,um é conseqüência do outro.O mundo não anda aos saltos ou soluços.Bom carnaval!

Eduardo Guimarães – Por que, como disse Bill Clinton a FHC, o Chile não sofreu com as crises na Cochinchina?

Sandro Vaia – Porque as reformas econômicas chilenas já estavam consolidadas há mais de uma década.

Eduardo Guimarães – Então FHC ter segurado a desvalorização do real não foi o que provocou a crise cambial?

Sandro Vaia – O ataque especulativo contra a moeda aconteceu quando tinha que acontecer.E não houve custo fiscal.

Eduardo Guimarães – Tinha que acontecer crise cambial? Não houve custo fiscal? E custo humano, com volta da inflação, desemprego e fuga de capital?  E quem foi que fez esse sinistro “ataque especulativo” contra o real? Darth Vader ou Gustavo Franco?

Sandro Vaia – O ataque especulativo surgiu em decorrência da crise russa. A inflação foi de 8,9%.

Eduardo Guimarães – Teria havido “ataque especulativo” se o real não estivesse sobrevalorizado artificialmente?

Sandro Vaia – Ataque especulativo é movimento mundial de capitais

Eduardo Guimarães – Então o mundo inteiro entrou em crise por conta da crise Russa, ou só os países que tinham câmbio sobrevalorizado?

Sandro Vaia – Não sei. E qual a vantagem eleitoral de manter o real sobrevalorizado? Arruinar as exportações?

Eduardo Guimarães – Vantagem de manter câmbio sobrevalorizado foi a de manter a promessa de FHC que se ele fosse reeleito o real não seria desvalorizado

Sandro Vaia – Prometeu a quem? Quem queria o câmbio sobrevalorizado? Desde quando câmbio ganha eleição?

Eduardo Guimarães – FHC prometeu publicamente que se fosse reeleito o real não seria desvalorizado e que se Lula fosse eleito, seria. E câmbio valorizado ganha eleição porque aumenta poder de compra da população. Por isso Menem, amigão de FHC, manteve. Aliás, o Estadão acusou Lula de manter o câmbio valorizado por “populismo”. Sabia?

Sandro Vaia – Problema do Estadão.

Eduardo Guimarães – Então câmbio valorizado não aumenta poder de compra do povo? Estadão acusou Lula falsamente?

Sandro Vaia – Não estou aqui para debater as opiniões do Estadão.

Eduardo Guimarães – Por que pode acusar o governo Lula e não pode debater o Estadão? Repito: Câmbio sobrevalorizado aumenta ou não poder de compra? E por que FHC prometeu, na TV, em 1998, que o real não seria desvalorizado se ele fosse reeleito e seria se Lula se elegesse?

Sandro Vaia – Por causa do ataque especulativo. Se ele prometeu ou não, não sei.

Eduardo Guimarães – Procure saber.

Sandro Vaia – E câmbio valorizado aumenta o poder de compra pois ajuda a segurar a inflação.

Eduardo Guimarães – Mas a sobrevalorização do câmbio em 1998 fez a inflação explodir em 1999

Sandro Vaia – 8,9% foi explosão?

Eduardo Guimarães – Partindo da inflação do início do real, 8,9% não é inflação alta?

Sandro Vaia – Inflação alta, padrão brasileiro, era 5000%

Eduardo Guimarães – Que bom que diz isso. Mídia diz que estamos em surto inflacionário

Sandro Vaia – O custo direto do crescimento induzido artificialmente em ano eleitoral está começando a ser pago agora.

Eduardo Guimarães – Lula aumentou os juros em pleno processo eleitoral

Sandro Vaia – Quem aumenta os juros é o Banco Central, não o presidente.E é para segurar a inflação.

Eduardo Guimarães – Mas a mídia acusa Lula pelos juros altos

Sandro Vaia – Eu estou falando da farra fiscal de 2010. Não estou comparando com nada.Quem está comparando é você.

Eduardo Guimarães – Seu artigo diz que “nunca antes neste país uma eleição custou tão caro”. Eu digo que a do político que você defende (FHC) foi mais.

Sandro Vaia – Eu não defendo político nenhum.Apenas digo que foi a eleição que custou mais caro.Você não acha,e achar é um direito seu.

Eduardo Guimarães – Sorry, você está defendendo FHC, sim, de fatos que o tornaram tão impopular.

Sandro Vaia – Eu não estou defendendo.Você é que o está colocando em contraposição àquele outro.

Eduardo Guimarães – Cara, pensei que você era simpatizante do PSDB ou do DEM. Será que votou em Lula e Dilma?

Sandro Vaia –  Eu não sou simpatizante de ninguém.Só do Palmeiras. Mas sou antipatizante de demagogos e populistas.

Eduardo Guimarães – Não é simpatizante de nenhum partido, Sandro? Caramba! Eu e a torcida do Corinthians jurávamos que eras tucano e palmeirense.

Sandro Vaia – Pois então, você vê que não podemos confiar nem em você e nem na torcida corintiana.

Podemos quem, cara pálida? Você pode confiar em mim: deixe-me usar o sistema de arquivos do Estadão que acho tudinho.

Sandro Vaia – Então cite algum texto em que “a mídia” acuse Lula especificamente pelos juros altos.

Eduardo Guimarães – Não precisa. As críticas da mídia e da oposição à política monetária são de amplo conhecimento.

Sandro Vaia – Mídia não diz nada disso.Mídia diz que a inflação está subindo.E por acaso não está ? Um exemplo concreto, por favor.Com data, número de página, autor do texto.Blablabla não me serve.

Eduardo Guimarães – Infelizmente, não assino a imprensa golpista e não tenho como ver seus arquivos. Mas não esquente: todos sabem que é verdade.

Sandro Vaia – Bom, assim é cômodo: acusar sem ter que provar.

Eduardo Guimarães – Agora, se quiser me franquear acesso aos arquivos do seu jornal, procuro e te mostro.

Sandro Vaia – Já inventaram uma coisa chamada internet.Você não precisa ir até os arquivos do Estadão.

Eduardo Guimarães – Inventaram, também, uma coisa chamada senha de acesso

Sandro Vaia – Peça aos seus leitores terceirizados que lhe mandem provas.

Eduardo Guimarães – O que é um leitor terceirizado?

Sandro Vaia – Se você quiser,eu pago a senha pra você.

Eduardo Guimarães – Quero, sim. Não gasto meu suado dinheirinho com o PIG.

Sandro Vaia – Criticar juros é uma coisa. Atribuí-los a Lula é outra. Não confunda as coisas. Crítica aos juros você acha até na Carta Maior.

Eduardo Guimarães – O Estadão e o resto da imprensa golpista dizem que Lula criticava política monetária de FHC e fez igual

Sandro Vaia – Por falar em imprensa golpista, a única que me lembro é a Folha de 10/01/1999, com o artigo de Tarso Genro: Fora FHC.

Eduardo Guimarães – Folha diz que Estadão conspirou para derrubar Jango junto com militares. Edição do dia 19/02. Aliás, na edição de 19/2, Folha diz que não conspirou para o golpe como Estadão; só emprestou carros para transportar presos.

Sandro Vaia – Ah, são referências arcanas. Sim,é verdade. Mas passou-se meio século, depois veio a profissionalização. Você ainda está em 1964?

Eduardo Guimarães –  Quer dizer que o Estadão e o resto do PIG execram seu passado golpista? Aliás, eram golpistas, certo? Regeneraram-se, suponho

Sandro Vaia – Não ouvi ninguém “execrar”. Você ouviu?

Eduardo Guimarães – Ora, se não execram o tempo em que conspiraram com os militares para implantar a ditadura, então ainda são golpistas

Sandro Vaia –  Se vc conhece um minimo de história, sabe que não conspiraram “para implantar uma ditadura”.

Eduardo Guimarães – Reclame com a Folha. Aqui o link da matéria da Folha que diz que o Estadão conspirou com os militares para implantar a ditadura http://bit.ly/dZ30Bv

Sandro Vaia – Para quem não lê jornais golpistas, você anda lendo muito atentamente jornais golpistas.

Eduardo Guimarães – Achei na casinha do cachorro da minha filha.

Sandro Vaia – Então o cachorro da sua filha está melhor informado do que você.

NOTA DO EDITOR DO BLOG : tenho que rir!

Eduardo Guimarães – Ele usa como banheiro

NOTA DO EDITOR DO BLOG : tenho que rir de novo.

Sandro Vaia – Mas antes ele deixa você dar uma espiadinha, porque senão como você teria lido ?

NOTA DO EDITOR DO BLOG : rindo, ainda

Eduardo Guimarães – Exatamente, cheguei pouco antes, vi a Folha acusando o Estadão de ter conspirado para jogar o país na ditadura e peguei. Foi um prazer debater com você. Agora tenho que pegar o trânsito da tucanolândia.

Sandro Vaia – Certo. foi um prazer.

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Bem, temos que esclarecer algumas coisas. Apesar de não ter acesso aos arquivos do Estadão, achei o texto que Vaia queria com data e nome do autor, publicado pelo seu jornal, onde Lula é acusado pelos juros altos – que no governo do partido que Vaia apóia eram quase o triplo.

O texto é de Paulo Moreira Leite, publicado em 2006. Ele alude a uma expressão que ficou bastante conhecida porque era usada pela mídia para descrever o que FHC fazia com o câmbio: “populismo cambial”. Mostra que a mídia atribui, sim, os juros a governos. Para ler, clique aqui – e depois volte, que não terminei. É um texto curto.

Agora, a esta altura, você deve estar intrigado com o título deste post. É que Vaia mandou-me uma última mensagem. Aludiu ao editorial que o manda-chuva do Estadão Júlio de Mesquita Filho escreveu no dia da promulgação do AI-5, em 1968, sob o título “Instituições em frangalhos”, em que lamentava o endurecimento do regime. Respondi que o editorial deveria se chamar “Instituições que esfrangalhei”.

De resto, quero cumprimentar Vaia pelo espírito democrático de debater o que seus ex-patrões tanto temem. Apesar de divergirmos, aprecio muito pessoas corajosas como ele, que defendem com tanto empenho o indefensável quando seria mais fácil calar, como fazem os Mesquita até hoje.