Caso Queiroz: Deltan foi ‘pró-Flavio’ só para agradar Bolsonaro

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Em chats secretos, Deltan Dallagnol, coordenador da operação Lava Jato, concordou com a avaliação de procuradores do Ministério Público Federal de que Flávio Bolsonaro mantinha um esquema de corrupção em seu gabinete quando foi deputado estadual no Rio de Janeiro. Segundo os procuradores, o esquema, operado pelo assessor Fabrício Queiroz, seria similar a outros escândalos em que deputados estaduais foram acusados de empregar funcionários fantasmas e recolher parte do salário como contrapartida.

Dallagnol disse que o hoje senador pelo PSL Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República, “certamente” seria implicado no esquema. O procurador, no entanto, demonstrou uma preocupação: ele temia que Moro não perseguisse a investigação por pressões políticas do então recém eleito presidente Jair Bolsonaro e pelo desejo do juiz de ser indicado para o Supremo Tribunal Federal, o STF. Até hoje, como presumia Dallagnol, não há indícios de que Moro, que na época das conversas já havia deixado a 13ª Vara Federal de Curitiba e aceitado o convite de Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça, tenha tomado qualquer medida para investigar o esquema de funcionários fantasmas que Flávio é acusado de manter e suas ligações com poderosas milícias do Rio de Janeiro.

O escândalo envolvendo Flávio, que vinha dominando as manchetes, desapareceu da mídia nos últimos meses. A investigação, nas mãos do Ministério Público do Rio, parece ter entrado em um ritmo bem mais lento do que o esperado para um caso dessa gravidade. Moro tampouco dá sinais de que está interessado nas ramificações federais do caso – como o suposto empréstimo de Queiroz para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Nas poucas vezes em que respondeu a questionamentos sobre a situação do filho do presidente, ele repetiu que “não há nada conclusivo sobre o caso Queiroz” e que o governo não pretende interferir no trabalho dos promotores. Entretanto, o caso voltou aos noticiários na segunda-feira, 15 de julho, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, atendeu ao pedido de Flávio Bolsonaro e suspendeu as investigações iniciadas sem aprovação judicial envolvendo o uso dos dados do Coaf, órgão do Ministério da Economia que monitora transações financeiras para prevenir crimes de lavagem de dinheiro.

No dia 8 de dezembro de 2018, Dallagnol postou num grupo de chat no Telegram chamado Filhos do Januario 3, composto de procuradores da Lava Jato, o link para um reportagem no UOL sobre um depósito de R$ 24 mil feito por Queiroz numa conta em nome da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Segundo o texto, a “transação foi apontada como “atípica” pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) e anexado a uma investigação do Ministério Público Federal, na Lava Jato”. “Queiroz movimentou R$ 1,2 milhão entre janeiro de 2016 e janeiro de 2017. A comunicação do Coaf não comprova irregularidades, mas indica que os valores movimentados são incompatíveis com o patrimônio e atividade econômica do ex-assessor”, escreve o UOL.

A notícia levou Dallagnol a pedir a opinião dos colegas sobre os desdobramentos do caso, e sobre como seria a reação de Moro. A procuradora Jerusa Viecilli, crítica da aproximação de Moro com o governo Bolsonaro, respondeu “Falo nada … Só observo ”. Dallagnol manifestou sérias preocupações com a forma que o ministro da Justiça conduziria o caso, sugerindo que o ex-juiz poderia ser leniente com Flávio, seja por limites impostos pelo presidente ou pela intenção de Moro de não pôr em risco sua indicação ao Supremo: “É óbvio o q aconteceu… E agora, José?”, digitou o procurador. “Seja como for, presidente não vai afastar o filho. E se isso tudo acontecer antes de aparecer vaga no supremo?”, escreveu. Dallagnol completou, sobre o presidente: “Agora, o quanto ele vai bancar a pauta Moro Anticorrupcao se o filho dele vai sentir a pauta na pele?”

A força-tarefa da Lava Jato e os procuradores citados no texto foram procurados para comentários, mas não responderam até a publicação da reportagem. Se o fizerem, atualizaremos o texto.

A situação de Moro – como investigar um caso de corrupção envolvendo o filho do presidente que o indicou ao cargo, ou, ainda corrupção envolvendo o próprio presidente e seus familiares? – levou Deltan a considerar evitar entrevistas sobre foro privilegiado por temer perguntas sobre o caso envolvendo Flávio.

No mesmo dia que o grupo conversou sobre o caso Queiroz, Dallagnol conversou com Roberson Pozzobon, também procurador na operação Lava Jato, em um chat privado. Eles aprofundaram a preocupação com entrevistas nas quais a situação de Flávio Bolsonaro poderia ser abordada.

Ao contrário de sua usual ânsia em falar publicamente sobre outros casos de corrupção, Deltan deu a entender que estava relutante em fazer uma condenação mais severa de Flávio por temer as consequências políticas de desagradar o presidente – exatamente como sugeriu que Moro pudesse agir.

Depois de sugerir diferentes declarações que poderiam dar sobre o caso de Flávio, Dallagnol concluiu: “Só pode ser lido como chapa branca”. Pozzobon concordou e deu o seu veredito: “O silêncio no caso acho que é mais eloquente”.

Um mês e meio depois, no dia 21 de janeiro de 2019, no mesmo grupo, Dallagnol disse ter sido convidado pelo Fantástico, da rede Globo, para uma entrevista sobre foro privilegiado (a emissora preferiu não comentar o assunto). O procurador estava ansioso para falar do caso que a produção do programa indicou ser o foco da matéria – denúncias envolvendo o deputado federal Paulo Pimenta, do PT –, mas relutou em aceitar o convite por receio de que tivesse que falar também das tentativas de Flávio Bolsonaro de usar o foro privilegiado para barrar as investigações, mesmo que o caso tenha ocorrido quando ainda era deputado estadual, antes de sua posse como senador.

Dallagnol expressou sua relutância, calculando que o risco de ter que tratar do assunto era maior que os eventuais benefícios da entrevista: “Eu não vejo que tenhamos nada a ganhar porque a questão do foro já tá definida.” Os colegas da Lava Jato concordaram que a melhor opção era rejeitar o convite do Fantástico para evitar o que chamaram de um “bola dividida Flávio Bolsonaro” (a emissora preferiu não comentar o assunto).

OS DIÁLOGOS FAZEM PARTE de um pacote de mensagens que o Intercept começou a revelar em 9 de junho – série conhecida como Vaza Jato. Os arquivos reúnem chats, fotos, áudios e documentos de procuradores da Lava Jato compartilhados em vários grupos e chats privados do aplicativo Telegram. A declaração conjunta dos editores do The Intercept e do Intercept Brasil (clique para ler o texto completo) explica os critérios editoriais usados para publicar esses materiais.

Em outras conversas privadas, procuradores do MPF também comentaram o escândalo envolvendo Flávio Bolsonaro e Queiroz. “Não tenho dúvida de que isso é mensalinho”, escreveu o procurador regional da República Danilo Dias, acrescentando em seguida “No mesmo esquema de Mato Grosso com Silval Barbosa”.

Uma discussão ocorreu no dia 11 de dezembro de 2018, quando, num grupo chamado Winter is Coming, a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen compartilhou um link para uma matéria do Jornal Nacional sobre o caso. O telejornal explicou que “a análise do relatório do Coaf revela que a maior parte dos depósitos em espécie na conta do ex-motorista de Flávio Bolsonaro coincidem com as datas de pagamento na Assembleia Legislativa do Rio” e que “o Coaf apontou que Fabrício teve uma movimentação suspeita de R$ 1,2 milhão durante um ano.”

A subprocuradora, que havia enviado o link original, recapitulou o conhecido esquema de corrupção e previu os próximos passos da investigação: “Pessoas da mesma família empregá-la , depósito de parte dos salários de servidores em dias de pagamento, outros depósitos , resta saber quem recebia os saques . Agora vem a quebra do sigilo. Vamos aguardar a investigação geral do MPRJ quanto aos assessores”. Frischeisen está na lista tríplice escolhida pelos membros do MPF para substituir a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, cujo mandato se encerra em setembro.

Uma outra procuradora do MPF, Hayssa Kyrie Medeiros Jardim, explicou que o esquema praticado por Flávio se tratava de “Esquema equivalente ao descoberto na Dama de espadas”. Em seguida, a procuradora compartilhou um artigo da Tribuna do Norte, publicado no dia 12 de novembro de 2018, que revelava o funcionamento de um esquema similar na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. No caso, uma organização criminosa formada por servidores e ex-presidentes da casa realizou desvios milionários por meio de um esquema com funcionários-fantasma.

Frischeisen comparou o caso de Flávio a um outro, também no Rio de Janeiro, envolvendo a deputada estadual Lucia Helena Pinto de Barros, conhecida como Lucinha, “acusada de desviar dinheiro público em contratação de funcionário fantasma”. Citando uma nota do MPRJ, a procuradora disse que “MPRJ já fez denúncia sobre caso semelhante envolvendo funcionário fantasma”, indicando que haveria precedente para uma denuncia contra Flávio. No decorrer da conversa, nenhum dos procuradores discordou da declaração enfática de que Flávio teria praticado corrupção.

Segundo a revista Veja, que teve acesso ao documento que embasou a quebra de sigilo de Flávio Bolsonaro, o Ministério Público do Rio de Janeiro vê indícios que sugerem a prática dos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa no gabinete do então deputado. O caso seria, então, ainda mais grave do que os outros casos citados pelos procuradores.

Um mês depois, no dia 17 de janeiro, os assessores de imprensa de Dallagnol, num grupo de chat privado entre o procurador e os profissionais, trataram de uma solicitação enviada pelo então repórter do Intercept Rafael Moro Martins (hoje editor em Brasília), que cobrava um posicionamento oficial de Dallagnol sobre o caso envolvendo Flávio Bolsonaro e Queiroz. Na mensagem, o repórter observou que o procurador vinha sendo “ativo nas redes sociais em assuntos que não dizem respeito à atuação da FT e do MPF.”

Dallagnol comentou as repetidas cobranças nas redes sociais por um posicionamento mais contundente sobre o caso Queiroz: “vi mta cobança na rede social, mas achava que eram mais robos”. Sua assessoria, no entanto, disse que a cobrança era orgânica e previsível: “era previsível, sim”, “essa cobnrança não é só de robôs”, “os jornalistas tb estão atentos”.

Foi então que a assessoria elogiou Dallagnol por seu posicionamento firme em relação ao caso de Flávio. “isso reforça o apartidarismo”, escreveu um assessor em um chat. O assessor também criticou a posição de Moro: “saem contar que a fala de Moro sobre Queiroz foi muito ‘neutra’. não teve firmeza, sabe? para muita gente, pareceu que Moro quis sair pela tangente”. Ele, a assessoria disse, “ficou em cima do muro”.

A preocupação do assessor de Dallagnol sobre as motivações de Moro no caso envolvendo Flávio foi enviada no chat em janeiro, pouco mais de um mês depois do próprio procurador debater o caso com os colegas.

No chat, Dallagnol não disse nada em resposta às críticas e à aparente disposição de Moro – famoso por sua severidade contra corrupção – de proteger Flávio. Essa conversa, entretanto, ocorreu cerca de dois meses depois que o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, como demonstrado previamente pelo Intercept, ter dito à procuradora Janice Ascari, num chat privado: “sobre a saída do Moro pro MJ, mas temos uma preocupação sobre alegações de parcialidade que virão . . . tenho medo do corpo que isso possa tomar na opiniã pública.”

Moro já foi questionado diversas vezes sobre sua aparente apatia diante não somente da investigação sobre a corrupção de Flávio, mas também de outros escândalos envolvendo o governo Bolsonaro, como as denúncias de que o PSL teria utilizado um esquema de laranjas nas eleições de 2018. Quando perguntado, Moro em geral alega não ter controle sobre a Polícia Federal, como fez novamente em entrevista concedida ao Correio Brasiliense no começo de julho: “A PF está apurando os fatos e deve chegar a conclusões. E à medida que estão sendo feitas as diligências, (elas) estão sendo informadas ao presidente”.

A afirmação de Moro de que ele não tem controle sobre a Polícia Federal – em resposta às críticas de que ele protegeu Bolsonaro e PSL – deveria ser vista com muito ceticismo. Durante anos, ele também insistiu que não desempenhou nenhum papel nas operações da Lava Jato, algo que as reportagem do Intercept, da Folha e da Veja provaram ser claramente falso.

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De The Intercept