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Fernández recebe a Argentina ‘quebrada’ por Macri

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O próximo presidente da Argentina, Alberto Fernández, que toma posse na terça-feira, dia 10, receberá de Mauricio Macri um país com uma série de problemas econômicos, financeiros e sociais.

Enfrentará ainda o desafio de manter a unidade de sua força política, o amplo e diverso peronismo, e de mostrar que quem governará será ele – e não a sua vice, a ex-presidente e senadora Cristina Kirchner.

Definido como “político de diálogo”, Alberto Fernández deverá encarar também as adversidades políticas com o presidente Jair Bolsonaro.

O Brasil é o maior parceiro comercial da Argentina, que é, por sua vez, o principal destino das exportações industriais brasileiras. Bolsonaro deverá ser o primeiro chefe de Estado do Brasil, em 17 anos, a não participar da posse de um presidente argentino.

A expectativa é que o representante do governo brasileiro na cerimônia seja o ministro da Cidadania, Osmar Terra.

Ex-chefe de Gabinete (equivalente a Casa Civil) dos ex-presidentes Nestor Kirchner, que morreu em 2010, e de Cristina Kirchner, Alberto Fernández é professor de Direito e pretende realizar um acordo nacional com diferentes setores, como políticos, empresários, sindicatos e movimentos sociais, para tirar a Argentina da crise.

A BBC News Brasil entrevistou políticos, diplomatas e analistas políticos e econômicos e detalha seus quatro principais desafios.

Economia

A Argentina está em recessão. De acordo com a estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI), seu Produto Interno Bruto (PIB) deverá cair 3,1% neste ano e 1,3% em 2020.

Depois de bater quase 55% em agosto, a inflação oficial cedeu nos últimos meses, mas segue em nível extremamente elevado, de 50,5% nos 12 meses até outubro.

É a segunda mais alta da América do Sul, atrás apenas da Venezuela, que experimenta hiperinflação e uma grave crise. O desemprego é de 10%, a pobreza atinge 40,8% da população de pouco mais de 40 milhões de habitantes, de acordo com o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), que costuma antecipar os dados oficiais.

Além disso, a Argentina possui dívida a ser paga ao FMI e aos que investiram nos títulos do país – e ainda não está claro como fará para pagar. Na semana passada, em um discurso para empresários, Alberto Fernández disse que “pagará a dívida” e “sem descontos”, mas quando o país voltar a crescer.

A economista Marina Dal Poggetto, da consultoria econômica Ecogo, de Buenos Aires, disse que o governo Fernández terá de administrar cinco tópicos ao mesmo tempo: o dólar, a inflação, o valor das aposentadorias e pensões, o preço das tarifas dos serviços públicos e a taxa de juros, que estão em níveis recorde.

“Estes cinco pontos dependerão de consistência política e econômica”, afirma.

Para ela, a delicada situação social dificulta um ajuste fiscal.

“As aposentadorias não podem ter perdas, as tarifas não podem subir de maneira que afetem o consumidor, mas também não podem ser baixas para não aumentarem o rombo fiscal.”

“O que precisamos é de um programa de estabilização da economia como o que o Brasil já fez, com o Plano Real, e a Argentina ainda não”, avalia a economista.

Em sua visão, o acordo de preços e salários que Fernández estaria tentando costurar entre entidades empresariais e sindicatos seria necessário, mas não suficiente.

No governo Macri, o FMI concedeu um empréstimo recorde para um país, um total de US$ 57 bilhões. Fernández disse que não quer os US$ 11 bilhões que o organismo ainda enviaria à Argentina, mas economistas se perguntam como o país fará sem o restante do financiamento.

Peronismo

A maior força política do país, o peronismo tem mais de setenta anos e adeptos de várias linhas ideológicas, entre ex-presidentes, governadores, prefeitos, sindicalistas e setores dos movimentos sociais.

A união do movimento – que vivia uma fase de desarticulação desde o fim do governo Cristina – foi apontada como fundamental para a eleição de Fernández, como disseram os analistas políticos Ricardo Rouvier, da consultoria Rouvier e Associados, e Enrique Zuleta Puceiro, comentarista da América TV.

“O principal desafio de Alberto Fernandez será desenvolver um governo de coalizão. Uma coisa é fazer coalizão para ganhar a eleição e outra é governar. O rumo do governo tem que estar muito claro, o que ainda não vemos, para que a coalizão funcione”, disse Zuleta.

Estudioso do peronismo, Rouvier, por sua vez, acha que, diante da situação do país, o peronismo continuará unido, mas não se sabe por quanto tempo.

“Vai depender da economia e principalmente da área social. Se a economia for bem, a liderança de Alberto Fernandez e, obviamente, de Cristina Kirchner será fortalecida. Haverá uma trégua que não sabemos quanto vai durar. Talvez um ano, talvez até a eleição legislativa de 2021”, afirma.

Cristina Kirchner

Figura central da política argentina, a ex-presidente, que governou o país entre 2007 e 2015 e é viúva do seu antecessor na Casa Rosada, o ex-presidente Néstor Kirchner, foi quem teve a ideia de que Fernández fosse candidato à sucessão de Macri.

Se em maio ela causou surpresa ao abrir mão de disputar o cargo, hoje enfrenta o ceticismo de críticos do kirchnerismo e setores da sociedade que não acreditam que ela aceitará o papel de coadjuvante.

A questão divide especialistas.

Para Rouvier, essa é “uma grande pergunta”: se será Cristina quem terá a palavra final sobre decisões do governo ou se Fernández.

“Ainda não sabemos o que vai acontecer. Mas é um tema, sem dúvida. O tempo dirá se ela vai mandar ou se os dois vão governar juntos.”

Para Zuleta Puceiro, foi Cristina quem venceu a eleição presidencial – já que foi ela que articulou a chapa -, o que contribui, na sua visão, para a expectativa do poder que exercerá.

“Ela ‘ganhou a eleição’, ele fez o acordo político com os diferentes setores para que tivessem mais apoio. Mas o rumo do governo ainda não está claro”, disse.

“É muito pouco provável que Cristina não queira que Fernández tenha bom desempenho como presidente”, pondera a analista econômica Marina Dal Poggetto.

Relações exteriores

Definido como sendo, atualmente, de centro-esquerda, Alberto Fernández governará rodeado por colegas de centro-direita ou de direita entre os vizinhos.

Bolsonaro, no Brasil, Mario Abdo, no Paraguai, Lacalle Pou, no Uruguai, Sebastián Piñera, no Chile, e Jeanine Áñez, na Bolívia.

O futuro ministro das Relações Exteriores, o peronista Felipe Solá, é definido como um político experiente e aberto ao diálogo. Assim como o futuro embaixador da Argentina no Brasil, o também peronista Daniel Scioli, vice de Néstor Kirchner entre 2003 e 2007.

Nos últimos dias, Fernández liderou a reunião do chamado Grupo de Puebla – que reúne, principalmente, ex-presidentes de esquerda – e fez homenagem ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Ele escolheu o México, governado por López Obrador, como destino de sua primeira viagem internacional após eleito e recebeu o ex-presidente do Uruguai, José ‘Pepe’ Mujica. O Grupo de Puebla nasceu para ser o oposto do Grupo de Lima, que reúne países que apoiam Juan Guaidó e são contrários ao governo Maduro, da Venezuela.

“Acho que a proposta (para a área de relações exteriores) de Alberto Fernández ainda é confusa. Mas acho que haverá uma adaptação da Argentina aos países sócios. Também acho que a Argentina vai continuar no Grupo de Lima, apesar das diferenças com os demais integrantes.

Se não, será um bloco de dois, apenas com a Argentina e o México, o que não funcionaria. Mas vale observar que o Grupo de Lima simboliza Trump e o de Puebla simboliza Cuba”, disse o ex-embaixador da Argentina no Brasil durante o kirchnerismo, Juan Pablo Lohlé.

Em visita a Buenos Aires, a dias da posse, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, buscou realizar o que chamou de “diplomacia parlamentar”, com reuniões com o presidente da Casa na Argentina, Sergio Massa, e com o próprio Fernández.

“O Brasil precisa da Argentina e a Argentina precisa do Brasil. Os debates ideológicos às vezes ajudam e às vezes atrapalham.”

Ele contou que Bolsonaro lhe disse que a relação do Brasil com a Argentina “é importante” e que deseja “mantê-la em alto nível”.

Massa, aliado de Fernández, afirmou, por sua vez, que “independentemente das pessoas e das ideias, a relação com o Brasil é imprescindível, indestrutível e permanente.”

Oficialmente, entretanto, não há previsão de encontro entre Fernández e Bolsonaro.

BBC BRASIL