Até agora, o MEC de Bolsonaro só fez bagunça
O Ministério da Educação (MEC), onde são tomadas decisões que moldam o futuro dos brasileiros, é hoje o epicentro do pandemônio no governo federal. Ali, os projetos estão emperrados, as brigas ideológicas atravancam decisões, as demissões ocorrem em série — e a educação, um dos temas mais importantes da agenda nacional, está à deriva.
Em apenas 85 dias de governo, o MEC já registrou nada menos que quinze baixas em cargos de alto escalão. A secretaria executiva, o segundo posto de maior relevância, seguia sem secretário até o fechamento desta edição. Houve duas tentativas consecutivas de nomear alguém — e ambas fracassaram.
Na semana passada, quando o Palácio do Planalto derretia em confronto com o Congresso, o MEC do ministro Ricardo Vélez entrou em cena e ajudou a aumentar ainda mais a confusão.
Na segunda-feira 25, a secretária de Educação Básica, Tania Almeida, cumpria uma missão importante: convocou uma reunião via Skype para destravar repasses a estados e municípios, que estavam paralisados pela falta de respostas do ministério.
Sua nobre iniciativa emperrou no mesmo dia: Tania Almeida, surpreendida por uma decisão que adiava para 2021 a avaliação de alunos de 7 anos na etapa de alfabetização, perdeu a paciência e pediu demissão.
Claro: aquela conversa no Skype para agilizar repasses a estados e municípios caiu no vazio e emperrou de novo, como tem acontecido com quase tudo no MEC do ministro Ricardo Vélez.
A confusão não terminou com a demissão de Tania Almeida e é ilustrativa da algazarra que vive o MEC. Ela era contra o adiamento da avaliação, mas o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, responsável direto pela avaliação, era a favor.
Ele, então, preparou uma portaria postergando a medição para 2021. O ofício do adiamento foi então enviado ao presidente do Inep, Marcus Vinícius Rodrigues, responsável pelas aferições oficiais do ensino. Rodrigues assinou o documento do adiamento.
Divulgada a decisão, os especialistas denunciaram que o adiamento era um tremendo retrocesso. Impressionado com a má repercussão, o que fez o ministro Vélez? Mandou chamar o presidente do Inep para demiti-lo.
O diálogo foi rápido. “Como o senhor assina uma portaria sem me consultar?”, questionou o ministro de pé, irritado, dedo em riste. Rodrigues explicou que assinaturas de portarias são rotineiras em sua função (e são mesmo) e aquela tinha sido protocolar, por entender que o secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, era o dono da decisão.
“O senhor está demitido”, disse o ministro, querendo conduzir à porta o interlocutor, que declinou. “Na minha terra só se abre a porta para alguém quando é para voltar”, disse Vinícius Rodrigues a VEJA. E disparou: “Não acredito que o decreto tenha sido feito sem o conhecimento do ministro. Nadalim é um dos poucos que entram e saem do gabinete sem bater à porta”.
No dia seguinte, em depoimento à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, Vélez disse que a tal portaria, já revogada, ainda estava em debate e que o ato de Vinícius Rodrigues fora “uma puxada de tapete.”
O MEC de Vélez foi transformado na central da anarquia. O ministro está enfraquecido, bombardeado por evangélicos, militares, partidos, e vive enredado com os “olavetes”, cujo mestre é o guru bolsonarista Olavo de Carvalho, que mora nos Estados Unidos.
Aos chamados vélezianos, restaram apenas quatro secretarias. Vélez está isolado no próprio feudo. Um dos fatores que o mantiveram no cargo até agora é de fundo prático: Bolsonaro não quer demiti-lo durante a crise do governo com o Congresso e, com isso, contribuir para aumentar o clima de incerteza.
Já no início do governo, o núcleo ideológico entrou em ação: fez uma varredura nas redes sociais de quadros do ministério à procura de críticos do bolsonarismo. Funcionários de médio e baixo escalões identificados como “petistas” foram afastados.
Cada vez que um era limado, vinha a comemoração. Em 30 de janeiro, o então chefe de gabinete Tiago Tondinelli soltou um comunicado que deixava clara a apropriação da agenda ministerial por esse grupo. Número um: “Audiências com o ministro deverão ser, sempre que possível, solicitadas com, no mínimo, duas semanas de antecedência”.
Era para valer. “No tempo em que estive lá, tudo passava pelo crivo dos olavetes. Sempre havia um olheiro deles nas reuniões”, conta uma ex-assessora.
Ficou mesmo difícil falar com Vélez. Vinícius Rodrigues, do Inep, tentou e conseguiu uma única vez, no começo do ano. A cúpula do Consed, o conselho dos secretários estaduais, também não passou disso e estranhou — em gestões anteriores, fazia em média duas visitas mensais ao MEC.
A tutela dos olavetes se atenuou com a saída de gente da alta confiança do guru, um gesto do ministro para tentar reaver sua autonomia. Em vão. De fato, seguidores de Olavo foram removidos do núcleo duro do ministério, mas o preço para Vélez foi elevado — ele precisou abrir mão do coronel Ricardo Roquetti, seu assessor mais próximo, e de Luiz Tozi, seu secretário executivo, devidamente queimados no mar de tuítes disparados por olavetes e acusados de ser “tucanos”. Quanto ao ideário de Olavo, por assim dizer, ele continua presente no MEC.
A lupa ideológica pesa hoje sobre as questões do ensino, ainda que os seguidores do guru de Bolsonaro não vençam todas as batalhas. Eles queriam, por exemplo, fechar as portas do Conselho Nacional de Educação, que delibera sobre políticas na área.
O pleito chegou até a Casa Civil, mas não vingou. Em relação ao modelo de escolas cívico-militares, um dos raros programas em marcha no MEC, o desfecho tem tudo para ser diferente. Defendidos por Bolsonaro e abraçados pelos seguidores de Olavo e militares, tais colégios, que já funcionam em Brasília com ex-PMs e bombeiros organizando a rotina, ganharam até subsecretaria no ministério.
Em sua passagem pela Câmara, ao falar do modelo que acredita “afastar traficantes da escola”, Vélez, que nasceu na Colômbia, chocou a plateia ao citar um conterrâneo, o meganarcotraficante Pablo Escobar: “A ideia de Pablo era não consumir cocaína na Colômbia porque era um produto de exportação. Ao evitar que os jovens se tornassem consumidores, a violência diminuiu”. No MEC de Vélez, até Pablo Escobar é uma inspiração.
A bagunça já provocou danos concretos. Entre as 35 metas planejadas para a simbólica data dos 100 dias de governo, em 11 de abril, a única que diz respeito à educação (sim, só uma) é um programa de alfabetização.
Esse andou, mas em termos. O secretário Nadalim defende o método fônico em contraposição ao método construtivista. O plano de Nadalim prevê incentivos aos estados e municípios que aderirem à proposta. O texto apresentado, que ainda não é final, deixa em aberto como serão tratadas as escolas que adotarem a linha construtivista.
“O decreto não esclarece como funcionará a prometida ajuda técnica e financeira do MEC, quando começa, em quanto vai sair a conta e como serão avaliados os resultados”, alerta Mozart Neves, diretor de inovação do Instituto Ayrton Senna.
Ao aterrissar no MEC por indicação de Olavo de Carvalho, que enxergou nele potencial de se afinar com o bolsonarismo, Vélez, assustado, confessou em uma reunião: “Não tinha a menor ideia de que o ministério era tão grande”.
Quem convive com ele diz tratar-se de um teórico com senso de humor, afável, mas desastroso, como se viu na hoje famosa entrevista a VEJA na qual disse que “brasileiro viajando é um canibal”. Vários processos ficam represados na mesa do ministro sem nenhuma razão. Às vezes, sim, por motivos palpáveis.
Um dos motores do atraso do Programa Nacional do Livro Didático é ideológico: um grupo de avaliadores está examinando os livros do segundo ciclo do ensino fundamental, não gostou da primeira leva por conter “ideologias contrárias às do governo” e pediu mais tempo para passar o pente-fino — e isso numa gestão que insiste em dizer que queria acabar com o “viés ideológico”. Os alunos ficarão um ano a mais com a mesma bibliografia desatualizada.
A devastação no MEC é assunto amplamente difundido na Esplanada. Como muitos programas perpassam mais de uma área na burocracia brasiliense, é comum que técnicos de uma pasta tentem interlocução com o Ministério da Educação e não encontrem com quem falar, seja porque o cargo está vago, seja porque a máquina está emperrada.
O Fundeb, o principal fundo de financiamento da educação básica, virou preocupação até para o ministro da Economia, Paulo Guedes. A lei que o regulamenta expira em 2020 e, a esta altura, já era para o MEC estar capitaneando no Congresso a discussão sobre sua extensão, e em que moldes. Guedes tomou as rédeas e contratou uma consultoria para se debruçar sobre o tema.
“Se o Fundeb não for renovado, será um desastre para as escolas públicas, sobretudo para as mais pobres, irrigadas com mais verbas”, diz Luiz Miguel Garcia, presidente da Undime-SP, a união dos secretários municipais.
O estado de paralisia no MEC tem efeito dominó sobre as redes públicas, que deixaram de receber dinheiro. O ministério ainda não disse, por exemplo, quando enviará recursos técnicos e financeiros para ajudar os estados a formular seus currículos de ensino médio para atender à reforma prevista na base comum.
São 560 milhões de reais travados. Um funcionário da Pasta garante que um plano para deslanchar os incentivos sairá em breve. Mas a incerteza sobre os aportes é atalho para preocupação. “Os gestores ficam sem saber se esperam o dinheiro vir ou interrompem o programa”, diz um veterano especialista no assunto.
O programa de Bolsonaro para a educação sempre chamou atenção por ser demasiadamente enxuto e não conter uma visão mais abrangente de como o Estado pode ajudar a tirar o ensino brasileiro do atoleiro.
Piorou a situação o fato de a equipe do MEC ter logo se organizado em patotas. A guerra de Brasília ecoa nas salas de aula, que lidam com tremendas dificuldades, como as enfrentadas pela paulista Débora Galofaro, que, ensinando robótica com sucata, ficou entre os dez melhores professores do mundo no mais influente prêmio de educação do planeta.
Sua história, revelada nas páginas a seguir, mostra que ainda existe vigor e inteligência para mudar a prosa.
Da Veja