Bruno Covas faz trabalhador pagar (ainda) mais pelo transporte em SP
Todos os dias, de segunda a sexta-feira, Ana da Silva Santos Lucena pega um ônibus, o metrô e mais outro ônibus para chegar ao trabalho. A jornada começa às 6h da manhã, quando embarca em um veículo lotado —que começa a se mover mesmo com passageiros parados na porta ainda aberta— em frente à sua casa, no bairro de Itaquera, zona leste de São Paulo. Percorre mais de 40 quilômetros, quase sempre em pé, durante cerca de 1h30 até Pinheiros, zona oeste. Auxiliar de limpeza em uma prestadora de serviços, recebe de seu empregador um Bilhete Único Vale-Transporte que deve garantir seu traslado de ida e volta. Mas as regras mudaram nesta sexta-feira quase de repente. Agora, sua desconfortável viagem custará ainda mais.
Neste 1º de março, menos de uma semana depois de o prefeito Bruno Covas (PSDB) emitir um decreto, Ana pagou 4,30 reais a mais quando cruzou a última catraca. “A empresa não falou nada ainda comigo. Vou ter que perguntar”, explica ela, sem saber se o aumento será compensando por seu empregador. Caso não seja, este último ônibus, em trajeto de ida e volta, custará 172 reais a mais por mês — o equivalente a 16% de seu salário.
“Enquanto isso, vou andar a pé do metrô até o trabalho”, acrescenta ela, que tem 57 anos e, mesmo com hérnia de disco, terá que caminhar cerca de 20 minutos para chegar ao prédio em que trabalha. Além de outros 20 minutos no final do dia, ao voltar para casa. A doença também faz com que muitas vezes tenha que pegar três ônibus para ir ao médico depois de sua jornada de trabalho. E, por causa das dores, opta em determinados dias por fazer um trajeto alternativo e mais demorado, também com três ônibus, para viajar sentada ou com as costas apoiadas na barra do veículo. Passa, no mínimo, três horas por dia dentro de um transporte público quase sempre lotado.
As mudanças pegaram de surpresa Juliana Souza, que trabalha na portaria de um prédio comercial. “Achei que fosse um problema do ônibus. Até tirei foto para reclamar com a SPTrans. Não sabia que tinha mudado, não”, explica ela. “Então tô lascada”, ressalta. A mulher de 28 anos vive em São João Clímaco, na divisa com o município de São Caetano, e também demora 1h30 em dois ônibus e no metrô até chegar em Pinheiros. Recebia 1.000 reais “redondo” até o início deste ano. Mas, quando a prefeitura e o Governo do Estado aumentaram o preço do transporte público de 4 para 4,30 reais, passou a ganhar 989 reais. A prestadora de serviço na qual trabalha repassou para ela o custo do aumento. Caso tenha agora que arcar com a nova regra do vale-transporte, também pagará 172 reais a menos por mês. Na dúvida, vai deixar de pegar o último ônibus e andar a pé. “Vou ter que sair mais cedo de casa. Mas eu sou mulher, não dá para ficar andando sozinha em rua deserta de manhã cedo”, reclama.
Até o dia anterior, o passageiro com vale-transporte podia fazer quatro embarques, o que significava pegar até quatro ônibus municipais num período de duas horas pagando apenas uma passagem, ao custo de 4,30 reais; ou ainda embarcar em três ônibus + metrô/trem pagando um acréscimo de 3,65 reais pela integração. Com o decreto do prefeito Covas no último dia 23, o passageiro agora só pode fazer no máximo dois embarques, o que significa subir em no máximo dois ônibus municipais em um período de três horas pagando apenas uma tarifa; ou pegar um ônibus + metrô/trem pagando o mesmo acréscimo pela integração. Caso necessite fazer uma terceira viagem, precisará pagar uma segunda tarifa cheia, como aconteceu com Ana e Juliana nesta sexta.
A Prefeitura explica que o custo do vale-transporte é do empregador, não do trabalhador. Isso porque a legislação trabalhista prevê que um empregado não pode gastar mais de 6% de seu salário com transporte para ir ao trabalho, cabendo ao empresário subsidiar a maior parte da locomoção. Por essa lógica, com o corte no vale-transporte, a prefeitura estaria deixando de subsidiar o empresariado, que, em tese, deverá complementar o valor a ser pago por aqueles que fazem mais de duas viagens durante seu trajeto.
O problema é que o desemprego ainda é alto no país (12,3%) e mais ainda em São Paulo (14,2%), segundo os dados do IBGE da última semana. Com uma mão de obra farta, teme-se que trabalhadores que moram longe sejam facilmente trocados por outros que moram mais perto. Ou que muitos acabem arcando com o aumento do próprio bolso por não estarem em condição de negociar. “Hoje está fácil fazer essa troca porque o desemprego está alto. E o sindicato também está sem poder de negociação. O trabalhador tem que aceitar tudo que lhe é ofertado”, argumenta o advogado trabalhista José Augusto Rodrigues Júnior, conselheiro da Associação dos Advogados Trabalhistas de São Paulo. “Passar o aumento para o trabalhador é ilegal. Mas na prática essa ilegalidade já acontece, sobretudo em empresas prestadoras de serviço de limpeza, vigilância e segurança. Muitas falam que só vão pagar uma passagem por dia e pronto. Então, essa situação tende a aumentar”, acrescenta.
Ana se aperta no primeiro ônibus que pega de manhã. “Todo dia é assim”, conta. Ela salta no ponto final, na estação de metro Artur Alvim, na linha vermelha. Nesta sexta-feira de Carnaval ela dá sorte e encontra o vagão mais vazio e com lugar para sentar. O local vai rapidamente enchendo até chegar na estação República, onde Ana mais uma vez salta para pegar outro trem, o da linha 4 Amarela que vai deixá-la na Faria Lima. De lá, finalmente pega o terceiro ônibus até o prédio comercial em que trabalha. “Quando é para o Governo dar algo para a gente, demora muito. Mas para cortar é rapidinho”, diz, em referência ao fato de que trabalhadores e empresas tiveram menos de uma semana para se adequar ao corte.
A Secretaria Municipal de Mobilidade e Transporte estima que 120.000 pessoas serão afetadas, entre as 1,5 milhão que recebem vale-transporte de seu empregador. Ou seja, 8% dos passageiros. A economia gerada com o corte é de 419 milhões de reais por ano, “que poderão ser investidos em outras áreas”, destacou a secretaria ao EL PAÍS. Para as outras duas milhões de pessoas que utilizam o Bilhete Único Comum, além de aposentados, estudantes e trabalhadores informais, nada muda. As tarifas de integração com metrô e trem também permanecem iguais.
Para Ricardo Patah, presidente nacional do sindicato UGT e do sindicato dos comerciários, ainda é difícil apontar quem arcará com os custos. “A legislação obriga que os empresários arquem com esses custos. Então é possível que empresas repassem esse aumento para o valor das mercadorias”, especula. Mas também acredita que muitos trabalhadores que moram mais longe acabarão sendo trocados, ao mesmo tempo que ilegalidades, num momento de desemprego, aumentarão. “As pessoas estão receosas de ficarem desempregadas e muitas vão acatar as condições”, argumenta.
“Para quem é rico esse aumento não faz diferença, mas para a gente faz, sim”, comenta uma mulher que está no ônibus ao lado de Ana. Em frente, o trocador confirma com a cabeça que muitos foram pegos de surpresa e reclamaram. “A prefeitura avisa daquele jeito dela, né?” Já Ana não se preocupa só com ela, mas também com sua família, sobretudo com seu filho Rogério. Todos os dias, de segunda a sexta-feira, ele deixa sua casa em Itaquera para percorrer quase 50 quilômetros em dois ônibus e metro até o frigorífico da JBS em que trabalha, perto da avenida Anhanguera, já em Osasco. “Tudo que eu sei sobre a mudança é pela minha mãe. Ainda não falei com a firma”, conta. “Meu trabalho fica muito longe e às vezes demoro mais de duas horas para fazer a integração, então às vezes já tenho que pagar mais de uma passagem. Agora não vai ter mais jeito”.
De El País