Eugenia Gonzaga: “Para que não se esqueça, para que não se repita”
Em 23 de março de 2013, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizou pela primeira vez uma audiência pública sobre um tema incômodo e pouco conhecido: as relações da ditadura com as empresas privadas do período.
O caso específico abordado na audiência foi o da Panair, companhia aérea proibida de voar pelo governo militar em 10 de fevereiro de 1965 e que teve a falência decretada, apesar de não ter problemas financeiros. Conforme concluiu a CNV, a aniquilação da Panair foi coordenada por síndicos militares de uma falência atípica e que teve a ativa participação do Serviço Nacional de Informações (SNI), bem como de procuradores especialmente nomeados com esse objetivo.
A Panair, entretanto, foi um caso isolado no meio empresarial, que, em sua esmagadora maioria, apoiou totalmente a ditadura militar e também as violações de direitos humanos perpetradas. Algumas empresas não apenas apoiaram como também praticaram tais violações em suas dependências privadas.
Conforme consta do Volume II, do Relatório da CNV (Texto 2):
– os trabalhadores e seus movimentos sindicais – comprometidos muito antes de 1964 com a luta por seus direitos, especialmente por condições dignas de trabalho e moradia – foram o alvo primordial do golpe de Estado de 1964;
– desde 1º de abril de 1964, os sindicatos sofreram intervenções em suas direções sindicais (mais de 400 apenas em 1964); depredação de sedes de entidades; prisões, torturas e execuções de seus líderes e integrantes; tudo com o objetivo de quebrar a espinha dorsal do pujante movimento organizacional dos trabalhadores, em ascensão desde os anos 1950, e impedir que a partir deles se estruturasse qualquer possibilidade de resistência ao golpe civil-militar;
– a classe empresarial, autêntica representante das elites civis, apoiou o golpe de Estado pois ele representava a segurança de um regime econômico que privilegiasse o capital nacional associado ao multinacional, evitando, ao mesmo tempo, a reforma agrária e a expansão dos direitos trabalhistas;
– o apoio das empresas ao golpe foi tão ostensivo que foi criado o Grupo Permanente de Mobilização Industrial (GPMI) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), o qual estabeleceu como sua principal finalidade a colaboração com as Forças Armadas e Forças Auxiliares na repressão política, mediante a formação de nove comissões: de Veículos e Viaturas; de Autopeças e Sobressalentes; de Artigos de Couro e Calçados; de Artigos Têxteis; de Material e Equipamentos Aeronáuticos; de Víveres e Alimentação; de Medicamentos e Equipamentos Hospitalares; de Munição e Armamento; e, finalmente, de Equipamento Elétrico e Eletrônico.
Além de recusarem emprego (em todo o país) a perseguidos políticos constantes de listas das forças repressivas, obrigando suas famílias a uma situação de miséria, algumas empresas operavam como verdadeiras bases militares. Conforme contou Lúcio Bellentani, ex-empregado da Volkswagen de São Bernardo do Campo, à CNV: “estava trabalhando e chegaram dois indivíduos com metralhadora, encostaram nas minhas costas, já me algemaram. Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já comecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”. Foram presos no mesmo episódio mais de 20 metalúrgicos, a maioria da Volkswagen e o restante da Mercedes, da Perkins e da Metal Leve.
Os trabalhadores vitimados por esse tipo de repressão ainda lutam para obter reparação moral e material por parte das empresas.
Conforme concluiu a historiadora Heloísa Starling, em seu trabalho na CNV, contam-se nos dedos empresários como os controladores da Panair, que “permaneceram de fora” do esquema que levou ao golpe e à ditadura militar.
Tais empresários “assimétricos” sofreram um estrangulamento econômico mediante bem-urdidos Atos de Estado e processos de todos os tipos oriundos de acusações falsas. Como casos emblemáticos da perseguição ao meio empresarial, além da Panair, são citados aqueles relativos à interdição dos armazéns das empresas Wasim e Comal, expoentes na exportação de café; ao fechamento da TV Excelsior, pioneira no país na implantação da televisão; ao cancelamento de todos os seguros de órgãos do governo realizados pela AJAX Corretora de Seguros, a maior corretora de seguros da América Latina. A destruição dessas empresas ocorria ao mesmo tempo em que suas concorrentes, apoiadoras do regime militar, eram notoriamente beneficiadas, como se deu com a Varig, do empresário Ruben Berta, que assumiu todas as linhas internacionais do país no exato momento em que a Panair foi fechada.
Mario Wallace Simonsen, um dos dois principais sócios da Panair, morreu menos de uma semana após e fechamento de sua empresa. Sua filha, Marylou Simonsen, relatou na Audiência Pública de 23 de março de 2013 que, no mesmo dia da morte de seu pai, ela havia dito para ele que nunca mais voltaria ao Brasil, mas “ele olhou nos meus olhos, segurou minhas mãos e disse para que eu amasse o Brasil, pois os homens passam, mas o Brasil fica”.
A lembrança da Panair do Brasil ficou imortalizada em umas das músicas de Milton Nascimento e de Fernando Brant, cujo refrão fala saudosamente dos tempos e das asas da Panair.
“Para que não se esqueça, para que não se repita”.
Fonte: Relatório Final da CNV.
Colaboração de Juliana Amoretti
P.S. – Em nome das atrocidades que temos publicado diariamente, será realizada em São Paulo, no Ibirapuera, no dia 31.03.2019 (domingo), a I Caminhada do Silêncio pelas vítimas de violência do Estado. Concentração na Praça da Paz (Portão 7), às 16:00 horas.
Procuradora Eugenia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos