Em metade dos ataques contra escolas, armas vieram das casas dos atiradores
Desde 2002, ao menos oito escolas brasileiras sofreram atentados em que alunos ou ex-alunos armados abriram fogo contra estudantes e funcionários. As ações deixaram um total de 28 mortos e 41 feridos.
O episódio mais recente da trágica lista ocorreu na semana passada na escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano, na Grande São Paulo.
Em metade desses casos, os jovens atiradores utilizaram armas que estavam armazenadas em suas casas, segundo levantamento do Instituto Sou da Paz.
No massacre de Suzano, autoridades ainda não conseguiram determinar como o adolescente autor dos disparos obteve a arma utilizada no crime, um revólver calibre 38 fabricado pela indústria brasileira Taurus.
Ainda que baseado nos poucos tiroteios em massa ocorridos em escolas do país, o dado da origem doméstica de boa parte das armas usadas nessas ações homicidas dá novo relevo ao decreto presidencial 9.685, de janeiro desde ano.
A medida facilita posse de até quatro armas por pessoa e estende o prazo de validade do registro, de cinco para dez anos. “Em quase metade dos casos o estudante não precisou ir no mercado ilegal para comprar uma arma porque ela estava dentro de sua própria casa”, aponta Bruno Langeani, gerente do Sou da Paz. “A flexibilização na compra de armamentos, proposta pelo decreto, tende aumentar a presença de armas nas residências do país, o que pode vir também a aumentar a incidência desses atentados”, afirma.
Para Fabrício Rebelo, pesquisador em segurança e ex-diretor do Movimento Viva Brasil, que defende o acesso do cidadão a armas, o fundamental “é diagnosticar de que forma esses artefatos eram estocados nas casas” onde viviam os jovens atiradores.
A minuta do decreto das armas, elaborada pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, previa teto de duas (e não quatro) unidades por pessoa, e exigia a comprovação (e não mera declaração) da existência de cofre ou local seguro com tranca para armazenamento dos artefatos nos domicílios onde também residem crianças, adolescentes ou incapazes.
“Facilitar a compra de armas sem fazer contrapartida da guarda segura aumenta o risco de acidentes e mortes para quem tem criança ou adolescentes em casa. Ninguém vai fiscalizar se realmente existe esse local seguro declarado pelo comprador”, pondera Langeani.
Para Rebelo, os atentados a tiros em escolas são crimes de pouca frequência no Brasil e, portanto, o fato de parte deles ter sido cometida com arma legal e doméstica não tem relevância estatística diante das mais de 60 mil mortes por arma de fogo anuais do país. “A repercussão desses casos é maior, mas a maioria das armas envolvidas em homicídios no Brasil não tem origem legal”, diz.
Langeani evoca estudo do Sou da Paz que verificou a origem de mais de 14 mil armas apreendidas com criminosos em São Paulo, entre 2011 e 2012. Mais de 60% delas haviam sido fabricadas no país pela Taurus. Do total, 64% haviam sido produzidas antes da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, em 2003.
Foi o caso das armas utilizadas no massacre de Realengo, no Rio, compradas de um vigilante que havia adquirido o revólver legalmente em 1978. “A arma de fogo é um bem durável. Muitas daquelas armas vendidas no Brasil antes do Estatuto do Desarmamento trazem consequências até hoje. Esse período de total liberdade no comércio de armas é o modelo para o qual o atual governo quer voltar”, diz o pesquisador do Sou da Paz.
O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) usou o episódio de Suzano para criticar o Estatuto do Desarmamento. “Mais uma tragédia protagonizada por menor de idade e que atesta o fracasso do malfadado estatuto do desarmamento, ainda em vigor.” Ataques do tipo surgiram nos EUA, que mantêm um regime permissivo de comércio de armas leves e pesadas.
Entre 2002 e 2019, período em que foram registrados os oito casos de ataques a tiros de alunos ou ex-alunos a escolas brasileiras, os EUA registraram 660 episódios em que armas foram disparadas dentro de escolas ou contra elas, segundo um levantamento da Escola Naval de Pós-graduação dos Estados Unidos (NPS, na sigla, em inglês).
Para Langeani, a comparação com os EUA, ainda que pareça desproporcional, é relevante. Segundo ele, pesquisas investigaram por que há tantos atentados contra escolas em solo americano a partir de dados como incidência de distúrbios mentais entre jovens de vários países do mundo. “A diferença entre os Estados Unidos e outros países desenvolvidos que sobressaiu foi a da disponibilidade de armas, que é muito maior em território norte-americano.”
Entre os casos brasileiros destrinchados pelo Sou da Paz, 77,7% envolveram o uso de revólveres, arma cujo comércio é permitido por aqui e que tem poder de fogo reduzido quando comparado a metralhadoras e fuzis comumente usados em atentados norte-americanos.
“Esse tipo de atirador quer uma arma com a qual possa causar o maior dano possível. E a maioria dos brasileiros só conseguiu colocar as mãos em revólveres. Isso não é um acaso. O fato de não termos a venda legal de fuzis e metralhadoras faz diferença porque torna essas armas extremamente caras no mercado ilegal, tornando-as acessíveis apenas para o crime organizado”, explica ele.
Nos Estados Unidos, só em 2018 o NPS contabilizou mais de 90 atentados com armas em escolas. Essa profusão levou muitas instituições de ensino do país a adotarem protocolos para o caso de tiroteios, submetendo alunos e professores a treinamentos nos quais são ensinados a construir barricadas atrás das portas das salas de aula e treinam manter silêncio absoluto até a chegada da polícia.
“Esses procedimentos de proteção são muito melhores do que a sugestão de armar professores, coisa que poderia gerar ainda mais vítimas”, avalia Cláudio Beato, coordenador geral do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais.
A ideia de armar docentes já foi discutida nos Estados Unidos e entrou no debate brasileiro por sugestão do senador Major Olímpio (PSL-SP). Foi rechaçada por especialistas em segurança e pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), entre outros.
Pesquisas realizadas pelo Crisp mostraram que, em 2004, 7,2% dos alunos de Belo Horizonte haviam levado ou tentado levar uma arma de fogo para a escola. Em 2012, o percentual foi de 2,3%. Desde que o atentado de Suzano ocorreu, um jovem mineiro atirou na porta da sua escola, sem deixar feridos, e outro ameaçou colegas e escola de promover ação semelhante à da dupla paulistana. Ambos foram presos.
Os casos são creditados ao chamado efeito contágio, em que a divulgação de um tiroteio em massa contra escolas estimularia outros jovens a práticas semelhantes.