Escolas de Samba trarão desfiles com críticas políticas e homenagem a Marielle

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No Rio de Janeiro ou em São Paulo, quem for assistir aos desfiles das escolas do Grupo Especial vai ser convidado a fazer uma verdadeira reflexão sobre questões políticas e sociais do Brasil. Corrupção, racismo, opressão, “Ele não” — as discussões do cotidiano chegaram aos enredos nas duas avenidas do samba, e carnavalescos tentam mostrar com carros alegóricos e fantasias as críticas à classe política e até a icônicos “heróis” brasileiros.

RIO DE JANEIRO

Na Marquês de Sapucaí, após o sucesso do protesto levado por Beija-Flor, Paraíso do Tuiuti e Mangueira em 2018, a avenida vai se render, de novo, aos enredos críticos. Sete das 14 agremiações levantarão alguma bandeira este ano. Na Unidos da Tijuca, surgirão imagens como vermes vestidos com faixa presidencial. Um carro alegórico inacabado lembrará o corte de verbas e as dificuldades na construção do carnaval na São Clemente. E até um Pedro Álvares Cabral “ladrão” e presidiário surgirá na Mangueira.

Leandro Vieira, carnavalesco da Mangueira, vai levar para a Avenida o lado “B” da história do Brasil. A escola quer fazer uma homenagem a heróis populares que foram omitidos nos livros e contar outras versões para feitos atribuídos a personagens como Pedro Álvares Cabral, Princesa Isabel, Dom Pedro I e Marechal Deodoro. Com o enredo “História para ninar gente grande”, Vieira quer que a escola levante questionamentos.

“Carnaval é manifestação artística. E a arte é, também, olhar para a sociedade com a intenção de lançar luz sobre algumas ideias. E as minhas são colhidas em tempo real. Eu tenho interesse em dar foco a uma sociedade brasileira que discute mal as questões ligadas à representatividade popular. É fundamental propor essa reflexão”, afirma ele.

Um dos setores, chamado “a história que a história não conta”, vai desmistificar alguns heróis brasileiros construídos ao longo do tempo, desqualificando também seus feitos.

“A visão heróica de Pedro Álvares Cabral está muito ligada ao Eurocentrismo. O que o português fez ao chegar aqui no Brasil, em 1500, é muito mais uma invasão do que um descobrimento. A mesma coisa eu faço com Marechal Deodoro da Fonseca, apontado sempre como o herói da República. Mas não foi nos ensinado que a proclamação foi um golpe militar que não contava com o apoio da população”, cita o carnavalesco.

Mangueira desmistifica Pedro Álvares Cabral, numa versão que o associa a

Leandro destaca também que seus enredos sociais e críticos sempre foram bem aceitos. “Todos levantam um pensamento crítico e foram saudados pelo público e pela crítica. Não foi à toa que a Mangueira ganhou o seu primeiro Estandarte de Ouro em enredo quando apresentou o tema “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco”, em 2018. Agora, com a discussão política em alta, os carnavalescos lançam um olhar para isso.

O pesquisador, professor e estudioso da história do carnaval Felipe Ferreira diz que os enredos críticos são consequências do pensamento contemporâneo, e não uma causa. “Eles são um reflexo do momento que vivemos hoje, e não um ponto de partida para uma nova forma de pensar. As agremiações são sempre muito sensíveis às questões e discussões que pairam no ar. O que vemos hoje é uma consequência do nosso tempo.”

Mas até que ponto essa mistura de carnaval com críticas políticas e sociais dão samba? Para Ferreira, que coordena o Centro de Referência do carnaval e o grupo de pesquisa Laboratório de Arte Carnavalesca, na Uerj, o sucesso da onda de enredos críticos depende do desempenho das agremiações.

“No fundo, as escolas de samba querem sempre se superar, buscar bons resultados, ser saudadas pelo público. Elas procuram sempre responder aquilo que se espera delas. No ano em que as escolas com críticas sociais ficarem mal colocadas, isso praticamente vai acabar. Mas, em caso de sucesso, como vem acontecendo, isso se reforça. E isso é uma prova da vitalidade das agremiações, capazes de incorporar essa discussão atual.”

Dentro da crítica bem-humorada sobre o próprio mundo do samba, o desfile da São Clemente vai ter espaço também para “leves camadas críticas ao governo”. A última alegoria da escola da Zona Sul mostra parte das ferragens e tem a parte de trás aberta. A ideia, segundo o presidente Renato Almeida Gomes, é abordar o corte de verbas da prefeitura, que reduziu pela metade a subvenção das 14 escolas do Grupo Especial.

“A gente fez a parte da frente bem grande, mas a traseira vem incompleta, com um tesoura “cortando” a alegoria ao meio. O carro traz os carnavalescos das séries A, B, C e D. Estamos fazendo uma brincadeira séria, e ao mesmo tempo uma crítica, ao carnaval. Teremos a ala da vaidade, representando a disputa de egos entre os carnavalescos; a ala das musas e rainhas do carnaval, com cem homens usando bundas infláveis; e um carro alegórico que critica os camarotes da Sapucaí, alheios ao carnaval”, exemplifica.

Quem também levanta a bandeira crítica e social no desfile deste ano é a Unidos da Tijuca, que vai contar a história do alimento mais popular do mundo com o enredo “Cada macaco no seu galho. Ó, meu Pai, me dê o pão que eu não morro de fome!”. O desfile propõe que cada um faça a sua parte por um mundo melhor, dando uma pitada crítica ao tema.

Hélcio Paim, integrante da comissão de carnaval da agremiação, afirma que uma das fantasias que mais deverão chamar a atenção é a dos vermes com faixas presidenciais. “A ideia da fantasia nasceu em conjunto. O Laíla (ex-diretor de carnaval da Beija-Flor, que agora integra o time tijucano) sugeriu fazermos algo sobre os políticos ardilosos, que são sujos e não fazem nada pelo país. Chegamos à ideia dos vermes com a faixa presidencial, embora a roupa não faça referência direta a ninguém. Quando pensamos, a eleição ainda não tinha passado”, relata Paim, que faz parte da equipe desde 2015.

Vermes vestidos com faixa presidencial serão uma das críticas sociais levadas para a Avenida pela Unidos da Tijuca, que no enredo sobre o pão trata de algumas mazelas Foto: Divugalçaõ

A intenção de enredos críticos, segundo o integrante, é mostrar o retrato social do país. “Quando a gente apela para as orações, que são parte do tema, é porque alguém não está fazendo a sua parte. O povo está ficando sem esperança. E ver isso representado na Marquês de Sapucaí faz com que todo mundo se identifique,” comenta o artista.

SÃO PAULO

Nos desfiles que começam nesta sexta-feira (1) no Sambódromo do Anhembi, três agremiações vão levar para a avenida temas de engajamento político. A Acadêmicos do Tucuruvi, que desfila às 2h30 desta terça-feira, aposta no enredo “Liberdade — O Canto Retumbante de um Povo Heroico”. Na avenida, as alas devem lembrar movimentos sociais, Parada Gay, greve dos professores e até o embate entre “Ele, sim” e “Ele, não”, que movimentou a campanha eleitoral do ano passado entre apoiadores e opositores do presidente Jair Bolsonaro.

Segundo o carnavalesco Dione Leite, a ideia é fazer um “grande protesto por melhores condições no nosso país”. Segundo Leite, o tema da liberdade vai passar pela criação dos quilombos, a luta dos inconfidentes, de abolicionistas, além das conquistas das minorias e classes trabalhistas.

A letra do samba lembra trechos de músicas de protesto contra a ditadura como “Alegria, alegria”, de Geraldo Vandré, e “Apesar de Você”, de Chico Buarque.

Na sequência, às 3h35, outro enredo engajado será levado pela bicampeã, Acadêmicos do Tatuapé: “Bravos Guerreiros. Por Deus, Pela Honra, Pela Justiça e Pelos que Precisam de Nós”. Apesar do tom nacionalista da letra do samba, o presidente da escola, Eduardo dos Santos, diz que não há nenhuma escolha partidária.

“Não dá para ter um engajamento ideológico. A gente recebe gente de diferentes lugares, todas as classes sociais, todas as colorações partidárias. A escola não pode ter uma posição política. Não temos uma posição a defender ou um desfile que defenda alguma bandeira. A gente vai apresentar um enredo que homenageia as pessoas, do ponto de vista da guerra que elas empreendem.”

Segundo o dirigente, o enredo da Tatuapé vai falar das lutas que o povo brasileiro enfrenta no dia-a-dia, lembrando de problemas sociais como moradores de rua, mas sem esquecer das grandes batalhas da humanidade e das revoluções feitas “sem dar um tiro”.

No sábado, o enredo político vai ser responsabilidade da Águia de Ouro, que entra na avenida às 22h30, com o enredo “Brasil, eu quero falar de você! Que país é esse!”

“Se você pegar os índios que estavam aqui, quando os portugueses chegaram e pegar os pobres da periferia, você vai ver que nada mudou. Passaram-se 500 anos e ninguém faz nada. Não se trata de direita, não se trata de esquerda, se trata de povo brasileiro, que precisa ser bem tratado”, diz o presidente da escola, Sidnei Carriuolo.

O desfile começa com a chegada dos portugueses, fala da transição para a monarquia e da chegada à República. Um dos carros alegóricos terá uma representação de Brasília rodeada por políticos corruptos — na parte de baixo da alegoria uma prisão faz menção à operação Lava-Jato. “Se fala tanto em país de futuro… Mas futuro da onde que não chega? Quando chega esse futuro? Tem que ser agora.”

Da Revista Época