Especialistas dizem que padrão de atiradores envolve crise de masculinidade e fetiche por armas
Tanto o massacre ocorrido na quarta-feira (13) na escola estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), quanto o atentado que deixou ao menos 49 mortos em mesquitas da Nova Zelândia nesta sexta remetem, pelo que se sabe até agora, a um padrão e a um “roteiro” observados em ataques à escolas nos Estados Unidos e também a atentados extremistas recentes na Europa, explica o acadêmico brasileiro Gabriel Zacarias, da Unicamp, que estudou questões relacionadas ao tema em livros e artigos.
Esse padrão visto em massacres inclui questões marcantes: o atirador geralmente acumula sentimentos mal resolvidos de frustração e alienação social – com uma crise de masculinidade em parte significativa dos casos. Ele busca por armas como suposta forma de se mostrar viril e faz retratos de si mesmo com o armamento, criando uma autoimagem de “guerreiro”. E, após a execução do ato de violência em si, há em vários casos o suicídio dos autores.
Na opinião de pesquisadores do tema, entender esse padrão pode ajudar na prevenção de futuros ataques. Embora seja importante destacar que atentados assim sejam fenômenos complexos e com múltiplas causas, e que EUA, Brasil e Nova Zelândia apresentam realidades bastante diferentes.
Assim como no ataque em Suzano, que deixou dez mortos (incluindo os dois atiradores) e 11 feridos, os perpetradores costumam ser homens jovens. Em geral, têm dificuldade de inserção social e, ainda que muitas vezes não tivessem praticado violência até então, acumulavam algum tipo de ressentimento agudo em relação à sociedade e comunidade onde viviam.
Outra característica importante: eles costumam ter acesso a armas e/ou fetiche por elas.
Armados, esses homens frequentemente fazem alguma postagem ou retrato público que antecipa os ataques – um dos assassinos de Suzano postou fotos de si mesmo no Facebook com máscaras e armas que parecem ter sido usadas no ataque à escola.
Depois, ocorre o ato de violência em si, geralmente praticado em lugares com alta concentração de pessoas e aparentemente aleatórios – mas que muitas vezes são também simbólicos de sua frustração social.
Os atiradores de Suzano, por exemplo, eram ex-alunos da escola Professor Raul Brasil, onde realizaram o atentado, segundo informou a Secretaria de Segurança de São Paulo. Um deles foi expulso da escola no ano passado, deu a entender o secretário da pasta, João Camilo Pires de Campos.
No caso dos atentados na Nova Zelândia, um dos atiradores – o que filmou o atentado na mesquita com uma câmera presa à cabeça – tinha uma forte retórica anti-imigrantes e anti-islâmica.
Por fim, o “roteiro” de atiradores em massa muitas vezes termina com o suicídio dos perpetradores. É o que parece ter ocorrido em Suzano: as investigações apontam que um dos atiradores matou o outro e em seguida se suicidou.
As razões por trás do ataque na escola paulista ainda estão sendo investigadas pela polícia, que busca pistas para entender o que levou os dois ex-estudantes a entrarem atirando na escola, atingindo vítimas aparentemente aleatórias.
Mas, segundo o delegado-geral encarregado do caso, Ruy Ferraz Fontes, a motivação parece ser uma busca por reconhecimento de parte da comunidade. “Eles queriam demonstrar que podiam agir como (no massacre de 1999) em Columbine, com crueldade”, disse ele à imprensa.
Em geral, “existe, de fato, um roteiro seguido em ataques desse tipo”, diz à BBC News Brasil Gabriel Zacarias, que é professor de História na Unicamp e estudioso de casos recentes de extremismo islâmico na França (abordados no livro No Espelho do Terror: Jihad e Espetáculo ; ed. Elefante, 2018). “A escola muitas vezes é identificada como um lugar de opressão e ressentimento, e atiradores costumam ter alguma relação traumática não elaborada com aquele lugar. Existe, muitas vezes, uma dificuldade (dos perpetradores) de se inserir no normalmente aceitável.”
Zacarias é autor de livros e artigos que analisam esses massacres sob a ótica da espetacularização, ou seja, da busca dos perpetradores por atenção e reconhecimento midiáticos.
No caso da Nova Zelândia, essa espetacularização é ainda mais evidente por conta da transmissão dos atos via Facebook por um dos atiradores, “algo que remete a uma cena de um filme de ação ou a um videogame e, inclusive, é uma técnica que foi usada também pelo (grupo autodenominado) Estado Islâmico. Isso só mostra que a divisão de lados, nesse fenômeno, é algo ilusório: o modus operandi (dos atiradores) é o mesmo, por se tratar de um fenômeno global, com raízes parecidas.”
Em paralelo à representação midiática, existe também uma busca por armas como um anseio de empoderamento.
“O momento em que os atiradores se armam é uma espécie de fantasia, quando acreditam que vão ter uma sensação de potência. Antes de realizar os ataques, eles, então, posam como guerreiros (em fotos nas redes sociais), como se estivessem assumindo uma identidade heróica, embora não haja nada mais covarde do que atos desse tipo”, prossegue o pesquisador.
O suicídio, nessa narrativa, é aparentemente visto pelos atiradores como o momento de “glória e reconhecimento” que eles não tinham conseguido em vida. Como esses atiradores sabem que seus atos receberão grande atenção da mídia e da sociedade, “eles tentam criar uma autoimagem ‘gloriosa'”, explica Zacarias.
Para o professor e pesquisador, “ataques desse tipo já ocorriam muito antes de as redes sociais existirem, mas com as redes isso fica muito mais palpável: ele (atirador) produz a própria imagem e sabe como ela vai ser divulgada”.
“Quem comete um atentado sabe que vai ser apresentado de uma determinada maneira na imprensa, nos telejornais, nas redes sociais jihadistas. Vai ter um ‘momento de ‘triunfo’.”
Alguns desses elementos estão presentes também nos atentados extremistas realizados contra alvos populares em cidades europeias. No caso da França, o mais estudado por Zacarias, os perpetradores “geralmente são de um estrato social mais baixo e de família de origem imigrante, (sob) preconceito e dificuldade de ascensão social. (…) Parecem ter encontrado no terrorismo uma forma de dar um sentido mais nobre a uma vida que já estava fora da norma”.
Essa é uma teoria em meio a diversos estudos sobre perfis de atiradores e sobre as questões de fundo que os levam a fazer o que fazem, algo bastante estudado nos EUA, onde o problema se tornou quase epidêmico nas últimas duas décadas. Só em 2018, atiradores em escolas deixaram 113 pessoas mortas ou feridas. O país registrou, em média, um massacre a cada oito dias do calendário escolar.
Alguns estudos sugerem haver por trás de muitos dos casos uma possível “crise de masculinidade”, em que jovens homens, em geral brancos, que se sentem desconectados da sociedade acabam encontrando na violência e na cultura de exaltação de armas de fogo uma forma de se autoafirmarem.
“Investigadores dizem que massacres escolares se tornaram o equivalente americano a atentados suicidas com bombas – não apenas uma tática, mas uma ideologia”, diz reportagem de 2018 do jornal americano The New York Times sobre o tema. “Jovens homens, muitos deprimidos, alienados ou perturbados mentalmente, são atraídos pela subcultura de Columbine (palco do marcante massacre escolar de 1999, que deixou 15 mortos, incluindo os perpetradores, e deu início a uma onda de ataques semelhantes em outras escolas) porque a veem como uma forma de descontar (sua raiva) contra o mundo e obter a atenção de uma sociedade que eles acreditam que os trata com bullying, os ignora ou não os entende.”
A reportagem do New York Times citava como exemplo um vídeo feito pelo atirador do massacre de Parkland, na Flórida, que deixou 17 mortos. “Vai ser um grande evento. Quando você me vir no noticiário, saberá quem eu sou”, dizia ele no vídeo.
Em palestra de 2014, o professor de Justiça Criminal Eric Madfis, estudioso de ataques em escolas pela Universidade de Washington Tacoma, levantou questões semelhantes. Disse que massacres nos EUA costumam não ser causados por algo isolado, mas sim um conjunto de fatores: a maioria dos perpetradores são homens que sofreram algum tipo de bullying ou isolamento social; muitos buscam um reforço de sua masculinidade nas armas de fogo; alguns tinham histórico de problemas mentais, embora isso fosse na minoria dos casos que ele analisou.
“Eles sofriam frustrações de longo prazo, algo que acontece com muita gente, mas a diferença é que a maioria das pessoas tem alguém em quem se apoiar positivamente quando isso ocorre. (Porém), muitos perpetradores tinham como amigo apenas alguém que os estimulasse a praticar violência”, afirmou o pesquisador americano.
Em geral, disse ele, os atiradores também passavam por um momento de ruptura – ser demitido ou expulso da escola, por exemplo.
E costumavam planejar extensa e minuciosamente seu ato de violência.
“Eles às vezes passam dias, semanas planejando o ataque. Os atiradores de Columbine planejaram por mais de um ano. Eles costumam fantasiar a respeito do dia (do ataque) e nesse processo se sentem fortes e masculinos.”
“Tanto em massacres em escolas quanto em atos de terrorismo doméstico, os perpetradores usam armas e/ou cometem violência para se constituírem como ‘durões’, ‘homens de verdade’. Também usam a imprensa para criar espetáculos de terror e firmar-se como celebridades”, escreveu em artigo o pesquisador Douglas Kellner, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, também autor de obras sobre massacres desse tipo.
“Temos de nos tornar mais crítico dos roteiros midiáticos de hiperviolência e hipermasculinidade que são projetados como modelos de comportamento para homens ou que ajudem a legitimar a violência como modo de resolver crises pessoais e problemas”, sugere ele.
Gabriel Zacarias, da Unicamp, levanta outros dois pontos. O mundo passa atualmente por uma crise estrutural econômica que, em comunidades conservadoras, afeta autoimagem dos homens como “provedores do lar” e muitos homens não são encorajados a lidar com suas emoções e frustrações de outras formas que não pela violência e brutalidade.
“Para muitos, a violência é aceita como positiva e como sinal de virilidade, e impor-se por meio dela costuma ser visto como algo heróico”, avalia.
Da BBC