Luís e Miriam: suposto acidente durante e ditadura militar, familiares nunca recuperaram os restos mortais
09 de março de 1972 foi a data que um relatório oficial do Ministério da Aeronáutica registrou que morreram Luís Alberto Andrade de Sá e Benevides e sua esposa Miriam Lopes Verbena. De acordo com o relatório, eles teriam morrido em um desastre de automóvel, na Rodovia que liga Caruaru a Lajes (Correio Braziliense, 16 Mar 72 e Jornal do Brasil, de 13 de Mai de 72).
As circunstâncias do acidente, no entanto, jamais foram esclarecidas e seus corpos nunca foram encontrados. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) reconheceu a vinculação do desaparecimento e morte de ambos com a repressão militar.
Luís Alberto estudou Ciências Sociais no Rio de Janeiro/RJ, onde trabalhou como bancário até tornar-se dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), em 1968. Perseguido no Rio de Janeiro/RJ, mudou-se para Recife/PE, onde casou-se com Miriam, que também havia se formado em Ciências Sociais e era filiada ao PCBR.
Segundo apurou a CNV, Luís Alberto almejava viver na clandestinidade para fugir da perseguição que sofria e, no dia 8 de março de 1972, foi ao município de Cachoeirinha (PE), juntamente com Miriam, para providenciar documentos na Junta de Serviço Militar (JSM), adotando o nome falso de José Carlos Rodrigues. E foi com este nome que sua certidão de óbito foi lavrada, atitude comum dos agentes de Estado na época: mesmo tendo conhecimento do nome verdadeiro, faziam os registros oficiais com os nomes falsos da clandestinidade. Essa medida dificultava a localização dos corpos, pois raramente os familiares tinham conhecimento dos nomes utilizados na militância política.
Iara Xavier Pereira fez investigações sobre o acidente de Luís Alberto e de Míriam, em Pernambuco, para auxiliar o requerimento dos familiares dele na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP). Ela elaborou, em 17 de março de 1998, relatório circunstanciado, apontando várias contradições existentes nos relatórios oficiais. Por exemplo: não foi informado, nos documentos produzidos sobre o acidente, quem socorreu e quem transportou o casal do local do acidente para o hospital de Caruaru; não foi encontrado junto aos órgãos de fiscalização de estradas de rodagem, nenhum laudo do acidente automobilístico; testemunhas presentes no hospital que atendeu Luís Alberto e Miriam Lopes afirmaram que o local estava repleto de policiais e agentes estatais e que os médicos e profissionais da saúde demonstraram medo e receio de fornecer informações sobre o acidente e a morte das vítimas; no livro de internação do mesmo hospital não foram encontrados registros dos nomes verdadeiros de Luís Alberto e de Miriam Lopes, tampouco dos nomes de militância utilizados pelo casal à época do acidente.
Em seguida ao acidente, cuja data pode ter ocorrido, na verdade, em 8 de março de 1972, a irmã de Miriam, Maria Adozinha, que não exercia atividades políticas, foi sequestrada de dentro de sua própria casa, tendo sido levada para o DOI do IV Exército. Dias depois, o marido de Adozinha, Aloysio da Costa Gonçalves, também foi sequestrado em sua residência e levado para o DOI do IV Exército, onde permaneceu preso por 42 dias. Na ocasião ele foi levado para ver os corpos de Luís Alberto e Míriam antes de serem sepultados.
Dois meses após a morte de Luís Alberto e Miriam Lopes, o jornal Diário de Pernambuco, em 12 de maio de 1972, noticiou a desarticulação de militantes do PCBR que atuavam em Recife, presos a partir do acidente que vitimou Luís Alberto e Miriam Lopes.
A morte do casal tem pelo menos duas versões, ambas imputando a responsabilidade aos agentes do Estado. De acordo com a primeira, que tem como referência a declaração de Piragibe Castro Alves, ex-agente, para a CEMDP, em 12 de setembro de 1996, eles teriam sido capturados antes do acidente, que teria sido forjado. Conforme a segunda, relatada por Aloísio da Costa Gonçalves, cunhado de Miriam, em depoimento gravado pela CNV, no dia 14 de outubro de 2014, o veículo teria sido fechado propositalmente por uma caminhonete do DOI do IV Exército. Aloísio afirmou que foi Álvaro da Costa Lima, delegado de polícia em Pernambuco, quem declarou a Valdir Cavalcante, médico e cunhado do depoente, que uma caminhonete do DOI teria fechado intencionalmente o carro que dirigiam Luís Alberto e Miriam, provocando-lhes um acidente. Mas Aloísio afirmou que, na ocasião em que viu os corpos, não viu perfuração de tiros.
Os demais familiares informaram que tentaram recuperar os restos mortais de Luís Alberto e de Miriam, logo que souberam do acidente e do enterro, em cidade estranha ao domicílio de ambos, mas a exumação foi negada e que isso somente seria possível após cinco anos do sepultamento. No tempo aprazado, em 1977, os familiares tentaram novamente a exumação, mas os restos mortais estavam desaparecidos, inclusive os documentos que poderiam auxiliar a localização dos corpos tinham sido extraviados. Segundo apurado, o Cemitério Municipal Dom Bosco, em Caruaru/PE, seguindo as regras de outros cemitérios públicos, enterrava esse tipo de vítima sem cortejo ou qualquer honra fúnebre, sob supervisão policial, em cova rasa, à revelia dos familiares. Após 03 ou 05 anos trasladavam tais ossadas “especiais” para valas comuns ou ossários clandestinos, onde os despojos eram destruídos, queimados, amassados por retroescavadeiras, ou simplesmente despejados com carrinhola e pás de cal, para assegurar a rápida decomposição.
Nas cidades do Rio de Janeiro e de Campinas, respectivamente, há ruas com os nomes de Luís Alberto e de Miriam.
“Para que não se esqueça, para que não se repita”.
P.S. – As informações aqui constam do Volume III, do Relatório final da Comissão Nacional da Verdade.
O presente texto faz parte de uma série de relatos que estamos publicando diariamente, sobre eventos que constituem graves lesões a direitos humanos. Nossa intenção é dar visibilidade à I Caminhada do Silêncio, em prol das vítimas de violações estatais, que a CEMDP está organizando para o dia 31 de março de 2019, em São Paulo.