Ordem para celebrar golpe é inédita nos últimos 20 anos
A orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro para que quartéis celebrem o golpe de março de 1964 por meio de uma ordem do dia escrita e distribuída pelo Ministério da Defesa é fato inédito nos últimos 20 anos, desde a criação da pasta, em junho de 1999.
A decisão contenta setores das Forças Armadas que pretendem oferecer uma narrativa própria sobre o golpe, descrito como uma revolução no contexto da Guerra Fria, mas também incomoda militares que querem evitar uma agenda que divide o país.
“O Exército tem tanto a comemorar, a participação na Segunda Guerra, a presença na Amazônia, pautas que unem o país. O 31 de Março não, isso alimenta uma divisão falsa e que não interessa ao país, acho lamentável e também não interessa às Forças Armadas”, disse o ex-ministro da Defesa (2015-2016) Aldo Rebelo (SD-SP).
Para o ex-ministro, a decisão da Defesa de produzir uma ordem do dia unificada para todo país “já foi um gesto para atenuar a própria repercussão da celebração [que partiu do presidente]. Teve um certo efeito moderador porque seu conteúdo também valoriza a legalidade e a democracia”.
Oficiais não escondem o desconforto de ter que lidar com o assunto, embora defendam a possibilidade de apresentar a versão dos militares sobre 1964.
Em um simpósio para militares e jornalistas nesta quarta-feira (27), no Comando do Exército em Brasília, o chefe da comunicação social, general de divisão Richard Nunes, apontou a “polarização absurda da sociedade” que atinge diversos países, incluindo o Brasil, como um dos três desafios no planejamento estratégico da comunicação da Força para este ano —os outros são o sistema de aposentadoria militar, que eles chamam de proteção social, e reestruturação da carreira e a manutenção da credibilidade de instituição de Estado.
A polarização, segundo Nunes, “preocupa a instituição porque nós também somos objeto” dela, e ela se estendeu “ao 31 de Março”.
“Isso para nós é complicado porque a gente é tragado para o centro desse debate novamente, quando muitas vezes o que a gente quer é trabalhar para frente, vamos pensar nos projetos estratégicos. Agora, uma narrativa para uma instituição que participa da história do Brasil desde seus primórdios, ela é fundamental. Imaginar que seria diferente é absurdamente ridículo”, disse o general.
A polarização, segundo o chefe da comunicação, está ligada também “ao clamor” suscitado pela data de 31 de março de 1964.
“Tratar do 31 de Março ainda é, no Brasil, algo muito pungente. E há tentativas de construção de narrativas. Nós assistimos a uma narrativa predominar durante várias décadas e essa narrativa passou a ser contestada. É só isso. Houve uma narrativa que predominou goela abaixo. Para nós sempre foi, a gente olhava: ‘Não é essa a nossa narrativa, peraí. Não é bem assim que a gente analisa essa história’.”
A comemoração estimulada por Bolsonaro joga um holofote sobre um tema indesejado para muitos dos oficiais da ativa, que durante anos desenvolveram o discurso de que os eventos de 1964 pertencem ao passado e, por isso, não devem ser revisitados.
Essa posição está na essência da política desenvolvida pelas Forças Armadas ao longo das últimas três décadas, que contou com o apoio de todos os presidentes civis desde 1985, a fim de impedir a punição dos oficiais que praticaram crimes contra os direitos humanos durante a ditadura.
Dizer que os fatos pertencem ao passado e que, por isso, não precisam ser reexaminados foi determinante, por exemplo, na costura política que impediu a rediscussão da Lei de Anistia, de 1979.
Caso o STF tivesse ordenado a revisão da lei, militares poderiam ser punidos, condenados e presos e ter que prestar contas de cadáveres e militantes de esquerda até hoje desaparecidos, como ocorreu em outros países da América Latina.
A pedra de toque dos militares era a pacificação nacional. A tática funcionou muito bem desde a redemocratização, pois só pontualmente as discussões públicas sobre o golpe e a ditadura incomodaram os militares, como quando a Comissão de Desaparecidos resolveu, em meados dos anos 90, durante o governo FHC, indenizar a família do ex-militar e guerrilheiro de esquerda Carlos Lamarca (1937-1971). Ou quando a CNV (Comissão Nacional da Verdade) ganhou corpo a partir de 2012, durante o governo de Dilma Rousseff (PT).
A partir de 2011, no primeiro mandato de Dilma, as ordens do dia do Exército passaram a ser publicadas no endereço do órgão na internet. Desde então, nenhuma vez o golpe de 1964 foi tema.
Nos últimos 20 anos, segundo oficiais, a data era lembrada por alguns comandantes de unidades no interior do país que decidiam ler ordens do dia próprias, sem maior repercussão na Força ou fora dela. Outros externaram suas posições em textos publicados na internet e na imprensa.
Um deles foi um general que hoje está na reserva e atua no Palácio do Planalto, Maynard Marques de Santa Rosa. Em 2010, por ordem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele foi exonerado do cargo de chefe do Departamento Geral Pessoal do Exército depois que escreveu e fez circular na internet um texto em que criticava a CNV. Ele chamou o órgão de “comissão da calúnia” e disse que, “infensa à isenção necessária ao trato de assunto tão sensível, [ela] será uma fonte de desarmonia a revolver e ativar a cinza das paixões que a lei da anistia sepultou”.
Além dessas manifestações esporádicas, o golpe e da ditadura são lembrados pelos militares no batismo de logradouros e prédios públicos. A mais alta escola de formação de oficiais do Exército, a Escola de Comando e Estado-Maior do Exército na Eceme, se chama marechal Castello Branco, o primeiro presidente da ditadura militar.
Um dos salões do Palácio do Duque de Caxias, onde estão enterrados os restos mortais do patrono do Exército no Comando Militar do Leste, no Rio de Janeiro, se chama Saguão 31 de Março.
Pelo país afora, como em Juiz de Fora (MG), de onde, em 1964, partiu a primeira marcha dos rebelados sob a liderança do conspirador golpista general Olímpio Mourão Filho, outros salões e praças dentro de unidades militares recebem a mesma denominação.
No Parque Aeronáutico de Lagoa Santa, em Minas Gerais, três ruas internas homenageiam os presidentes da ditadura militar Castelo Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969) e Emílio Médici (1969-1974).
Homenagens do gênero não se restringem ao ambiente militar. Uma das principais pontes de Brasília se chama Costa e Silva –a Justiça do DF se recusa a aceitar que ela passe a se chamar Honestino Guimarães, um líder estudantil assassinado durante a ditadura, ao contrário de uma decisão da Câmara Distrital do DF.
O Ministério Público Federal enfrenta algumas das homenagens na Justiça, pontuando que a CNV, encerrada em 2014, concluiu pela necessidade de retirada dos atos laudatórios.
O procurador da República em Minas Gerais Edmundo Antonio Dias Netto Junior, que ajuizou uma ação civil para tentar reverter as homenagens em Lagoa Santa, disse que “nunca foi uma preocupação dos nossos poderes legislativos banir definitivamente essas homenagens, ao contrário do que recomendou a Comissão Nacional da Verdade e ao contrário do que ocorreu em outros países que passaram por experiências autoritárias”.
“O Brasil pode ser envergonhar de não ter vivenciado uma justiça transicional efetiva”, disse o procurador. Para Netto Junior, a narrativa de parte dos militares de que não houve golpe, mas uma revolução, foi uma tentativa posterior de legitimar a ação.
“Na busca da construção dessa narrativa, os militares contaram com aliados de primeira hora, na academia – que emprestou seus mais conservadores juristas para a defesa dessa tese – no empresariado e em outros setores. […] As iniciativas que ocorreram vêm sendo atualmente, inclusive, objeto de questionamentos revisionistas. A ausência de um processo profundo de justiça de transição entre nós abriu espaço para festejos irresponsáveis como os que vêm sendo anunciados para o próximo domingo [31].”
Na palestra de quarta-feira, o general Nunes comentou o nome de batismo da principal escola de formação de oficiais do Exército. Ele disse que em certo dia foi questionado por um grupo de estudantes que visitava o prédio sobre a referência ao primeiro presidente do regime militar, Castello Branco.
“Você sabe quem foi o oficial de operações da Força Expedicionária Brasileira na Itália. É o tenente coronel Castello Branco. Ele lutou contra o nazismo e o fascismo na segunda Guerra Mundial. Este é um herói brasileiro. ‘Ah, mas é o mesmo cara?’ É o mesmo cara, observa a história dele”.
Da FSP