Sobrevivente do ataque a Marielle: “Milícia suspeita tem forte ligação com o clã Bolsonaro”
No dia 14 de março de 2018, uma rajada de tiros atingiu a viatura onde seguia Marielle Franco, no centro do Rio de Janeiro. A vereadora pelo PSOL (extrema-esquerda), cuja carreira política estava em fase ascensional, morreu no ataque. O motorista Anderson Gomes também. A terceira passageira, a assessora Fernanda Chaves, sobreviveu sem nenhuma consequência física.
Durante uma semana, para assinalar um ano sobre a execução, Fernanda enviou depoimentos áudio ao DN, a partir de uma cidade que prefere não revelar e durante o horário de trabalho de um emprego que também opta por omitir, sobre a noite do crime, a perda da amiga íntima e como o crime afetou a sua vida desde então.
Sobre as investigações, a jornalista de 43 anos age com prudência. “Não devo dar respostas, tenho é o direito de recebê-las.” Mas confessa-se assustada por a polícia suspeitar de uma milícia, o Escritório do Crime, cujos chefes têm forte ligação ao clã Bolsonaro.
Do que se recorda daquela noite?
Tínhamos saído por volta das 21.00 de um evento chamado Jovens Negras Movendo as Estruturas, com jovens negras ligadas ao cinema, à comunicação, à produção. Foi um encontro muito positivo, ficou lotado, e saímos muito satisfeitas. Muito satisfeitas, portanto, entramos no carro. A Marielle foi para trás, coisa que ela nunca fazia, gostava de ir à frente, porque ela sempre foi muito do tipo copiloto, de reclamar com o trânsito e tal. Nesse dia, ela ainda chegou a abrir a porta da frente, mas atirou as bolsas para lá e brincou com o Anderson, dizendo que ele ia de motorista e ela de madame. Ele então puxou o banco para a frente para lhe dar mais conforto.
Ela queria ficar junto a mim porque precisávamos de escolher fotos do evento e, sobretudo, de combinar uma reunião do dia seguinte que estava a deixá-la ansiosa, já que ela seria proposta como pré-candidata a vice-governadora do Rio pelo PSOL, ao lado do Tarcísio Mota. Penso que ela quis ir atrás, também, porque não queria expor muito essa ansiedade perante o Anderson, até porque ele não era muito íntimo nosso, ele era o motorista substituto.
Estávamos também a falar sobre um artigo dela no Jornal do Brasil, que seria enviado nesse dia e que eu tinha revisto antes de chegar ao evento. Ela perguntou o que eu tinha achado, eu disse que mudara o título e outros detalhes. Vínhamos falando ainda com as famílias por WhatsApp, ela hesitava se passava numa padaria para levar um pãozinho para casa porque a Mónica [companheira de Marielle] estava meio febril e eu falava com o meu marido sobre a minha filha, que também estava febril. E, entretanto, ela ainda comentava sobre o jogo do Flamengo que tinha acabado de começar. Portanto, estávamos as duas com as cabeças baixas a olhar para os celulares quando, de repente, oiço um “eita”, algo do tipo, da Marielle, mas não em forma de susto, ainda acredito que a interjeição se referisse a alguma coisa que ela estivesse a ver no celular e não com algo em que ela tenha reparado do lado de fora. Foi nesse momento que chegou a rajada, os vidros estouraram, eu não vi nada, nada, nada, porque os vidros do Anderson eram de película muito escura, a Marielle estava do meu lado ombro a ombro, ela era grande, de cabelo volumoso, tapou-me a visão. O Anderson deu um “ai”, um gemido baixo, e eu percebi que as mãos dele soltaram o volante. Puxei então o travão de mão. Entretanto, ainda abaixada, com o rosto entre os bancos da frente e as pernas da Marielle, só pensava que tinha havido um tiroteio, porque naquele lugar, no Carnaval de semanas antes, isso havia acontecido. Por isso, saí rastejando para ver se via alguma movimentação por baixo da porta do carro.
Como estava tudo muito silencioso, comecei a chamar pessoas na rua, que se aproximaram, sem entender também o que tinha acontecido. Não encontrava o meu celular, perdido no carro, e pedi para uma senhora chamar uma ambulância. Disse, “por favor, avise que é uma vereadora!”. Mas ao dizer isso as pessoas começaram a tirar fotografias, a filmar, a gerar caos. A polícia chegou então ao local para isolar a área, já eu tinha visto o meu celular a piscar no chão do carro e por isso conseguido ligar para o meu marido e para um colega da coordenação do mandato. Para mim, àquela hora, a Marielle estava apenas desmaiada. É que eu sentia-me tão inteira, tão bem, apesar do sangue e dos estilhaços na cara, que não concebia que ela e o Anderson pudessem estar algo além de desmaiados. Nessa hora, o agente via rádio informou à minha frente “são dois mortos por tiro e uma sobrevivente”. Foi dessa forma que eu soube que a Marielle estava morta. Esse foi um dos piores momentos de todo este processo. Antes eu estava muito nervosa, trémula, abalada mas esforçando-me para ficar racional. Quando ouvi aquilo ali foi difícil não me descontrolar porque não tinha ninguém com quem dividir. E estava preocupada porque sempre trabalhei com a realidade da polícia do Rio e de repente via-me com vários agentes num lugar isolado, escuro. Lembro-me de que os agentes não tinham identificação no uniforme…
A ambulância, entretanto, chegou mas eu não queria deixar a cena. Os polícias até diziam “você não está sozinha, está aqui a polícia, você não confia na polícia?”, o que gerou uma espécie de “saia justa”. Mas o meu colega da coordenação e o meu marido entretanto chegaram e convenceram-me a entrar mesmo na ambulância. Acabei por recusar ir para o hospital e fui diretamente para a delegacia na Barra da Tijuca prestar depoimento durante toda a madrugada.
De então para cá, onde esteve?
Amigos meus, advogados da área dos direitos humanos, começaram logo a avaliar que seria importante para mim sair do Rio de Janeiro. E algumas pessoas da polícia também me aconselharam a sair de cena. Eu recebi essa informação como se me tivessem a dizer que bastava ir para o sítio do meu sogro uma semana. Só depois, ao não me ser permitida a ida ao funeral e a todos esses rituais de despedida por ordem de especialistas em segurança, é que eu comecei a entender a gravidade da situação e que eu precisava de sumir, de sumir mesmo do Brasil. O Marcelo Freixo [hoje deputado federal pelo PSOL e padrinho político de Marielle] falou-me, entretanto, da possibilidade de ir para Madrid, ao abrigo de um programa de proteção da Amnistia Internacional. E no dia seguinte bate à porta de casa a [antiga presidente] Dilma Rousseff, que foi de extrema sensibilidade e explicou-nos que a Marielle se tornaria um Chico Mendes [referência do ambientalismo mundial assassinado em 1988]. Ela disponibilizou-se para me ajudar com contatos de entidades fora do Brasil mas eu acabei optando pelo tal acolhimento da Amnistia Internacional, em Madrid, onde ficaria três meses, o tempo do visto.
Como eu saí do Rio achando que em poucas semanas o crime fosse resolvido mas depois senti que não havia expectativa de regresso, que não havia nenhuma informação das investigações, que o assunto até parecia ir morrendo, esses tempos foram muito difíceis emocionalmente. Contraí até uma infeção séria no ouvido, no processo. Quando melhorei, o meu marido, que é jornalista freelance mas teve de abandonar o escritório para ir comigo e com a minha filha de 7 anos, que esteve esse tempo todo fora da escola, insistiu que fizéssemos passeios para me distrair um pouco.
Quando eu estava num deles, em Paris, a polícia civil pediu-me para voltar ao Rio para fazer uma reconstituição do crime. Como a Anistia Internacional é que teve de pagar essa viagem, que foi de última hora e cara, os fundos do programa que me mantinham em Madrid terminaram após dois meses e não três. Fui então para Roma, a conselho de um amigo diplomata que reforçou que era muito importante ficarmos afastados do Brasil enquanto durassem as investigações e nos acolheu em sua casa. Por lá, algures em junho, como já havia calor na Europa, tinha uma comunidade brasileira em redor e participei até em seminários no Senado italiano sobre direitos humanos a propósito do caso, eu já estava melhor de humor. Na passagem de junho para julho, recorri a um programa de proteção a defensores de direitos humanos no Brasil e voltei. Não voltei para o Rio. Eu não posso voltar ao Rio, o Rio não é opção, pelo menos enquanto não descobrirem os autores e os mandantes, sobretudo os mandantes, do crime. Estou noutra cidade. Eu não sou testemunha ocular, não tenho muito mais a contribuir com informações porque não vi nada, nem percebi nada a não ser a rajada de tiros, logo, não sou propriamente uma testemunha ameaçada. Mas, quando a gente não sabe quem disparou e quem mandou disparar, a gente não sabe como e de quem se proteger, não é? Eu trabalhei toda uma vida no Parlamento do Rio e veio à tona que parlamentares podem estar envolvidos, por isso como é que eu posso voltar a um lugar onde está gente que pode ser responsável do atentado a um carro onde eu estava?
Em que cidade está e em que está a trabalhar?
Prefiro não divulgar ambas as informações. Assim como prefiro não partilhar dados ou fotografias da minha família, do meu marido, da minha filha. Espero que compreendam.
Qual a sua opinião sobre a investigação?
Durante esse tempo todo eu tenho evitado divagar sobre as possibilidades da autoria do assassinato. É uma posição pensada porque eu sinto que não tenho de dar respostas, tenho é de recebê-las: o estado brasileiro, a polícia é que me está a dever respostas a mim, a todos nós, ao mundo. No entanto, não dá para negar, pelo perfil do crime, pela arma utilizada, que há envolvimento de milícias. E não é novidade que a família do presidente Jair Bolsonaro tem ligação com as milícias – ele já as exaltou e o filho dele homenageou polícias envolvidos em milícias.
As milícias são grupos armados compostos por polícias, bombeiros, agentes penitenciários – uma espécie de braço armado do Estado atuando no crime, portanto. No fundo, são máfias, porque dominam territórios, cobram às populações por serviços de gás, televisão por cabo ou aluguer de forma criminosa. E agem sobre decisões políticas. As ligações de Bolsonaro e do filho, através de muitos membros dos seus gabinetes, a milícias e, mais precisamente, ao grupo miliciano acusado de executar a Marielle, são aterrorizantes. E têm de ser investigadas e cobradas. Mas a minha avaliação sobre o assunto acaba aí. Quem tem de falar são as autoridades.
Porque acha que a queriam matar?
A Marielle foi morta por causa do seu pensamento: foi um crime político. E a extrema-direita tem que ver com esse crime bárbaro. E as milícias estão ao serviço da extrema-direita. Basta ver quem são os políticos que as homenageiam e quem são os políticos que elas ajudam a eleger. É assustador. E o Brasil tem de dar uma resposta para o mundo.
Marcelo Siciliano, deputado estadual pelo PHS, chegou a ser dado como responsável. Ele nega e afirma-se amigo de Marielle. O que acha?
Acho uma loucura. Diz-se que seria por uma disputa de território mas a Marielle não fazia disputa territorial, não era esse o tipo de atuação dela. Por isso, parece-me um engano. Ou uma enorme cortina de fumo.
Jean Wyllys, deputado do PSOL, abandonou o Brasil por medo das ameaças. A Marielle era ameaçada? Vocês tinham medo?
A Marielle impressionava-se muito com a situação do Jean. Os deputados do PSOL do Rio encontravam-se com frequência, fosse em reuniões, fosse em atividades de rua das sextas-feiras, fosse até num bloco de Carnaval. E o Jean nunca estava. E não estava por causa das ameaças. A Marielle sempre dizia que não suportaria o que o Jean suportava, que jamais conseguiria viver ameaçada, que jamais conseguiria viver enclausurada. Ambos são alvos da extrema-direita, que vive de ameaças. E, quando não ameaça, mata mesmo em vez de disputar ideias na base do diálogo. Agem como monstros, como primatas.
Nós tínhamos medo da violência, claro, como quaisquer cidadãs cariocas. Mas não tínhamos medo de que acontecesse algo do tipo do que aconteceu. Se tivéssemos, teríamos tomado alguma atitude. Ela nunca foi ameaçada, nem de forma implícita. No máximo, de vez em quando havia um ataque de ódio ou outro nas redes sociais. E ela era especialista em segurança, por isso jamais negligenciaria esse lado. Até porque, além do mais, ela era uma apaixonada pela vida. O que ela tinha, por outro lado, era preocupação com as pessoas em redor porque nós tínhamos no gabinete outras mulheres faveladas, negras, LGBT, transexuais, pessoas de religiões de origem africana que, pela roupa ou por outro motivo, causavam incômodo até em vereadores que se recusavam a subir no mesmo elevador… Com ela própria, no entanto, nunca detectamos algo suspeito.
Seria Marcelo Freixo, que tem um histórico de ameaças de milícias, o alvo dos criminosos?
Não, não acredito. Mas acho que quem matou a Marielle quis assassinar uma ideia e aí o Marcelo está incluído, como padrinho político dela, por se sentir que ela era uma continuidade dele.
Qual a sua relação com a Marielle?
Eu conheci-a em 2006, através do Marcelo, na Lapa, lembro-me bem do dia. Eu fui coordenadora de campanha dele a deputado estadual e ela, que já atuava na favela da Maré e cursava Sociologia, começava a aproximar-se da política. Trocamos contatos e passamos a conversar muito. Eleito, o Marcelo convidou-nos a trabalhar com ele. Tornamo-nos colegas, depois amigas, fomos madrinhas de casamento uma da outra, e ela foi madrinha de consagração da minha filha. Entretanto, fui para a Bolívia como correspondente do jornal Brasil de Fato, depois passei por Brasília, como assessora de um outro deputado, mas mantivemos sempre o contacto. Eu participei à distância na campanha dela. E estava com ela no dia da eleição, quando ela se virou e perguntou: “E agora? Tamo junto?” Aí, uns quatro dias depois ela liga-me a perguntar como estava a correr a mudança de Brasília para o Rio. Eu disse: “Espera aí, Marielle, eu te ajudo mas daqui.” Ela respondeu: “Não, você teve a vida toda a fazer assessoria para homem, agora eu fui eleita, não abro mão de te ter aqui na coordenação, conto com isso.” Falei com o meu marido, ele sentiu-se empolgado, e não era para menos porque a eleição dela coincidia com a eleição de um bispo da IURD para prefeito [Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo], o que era extraordinário, empolgante, de facto. E foi assim.
Um ano depois, como vai viver a data?
Estou muito contente porque no dia em que se completa um ano estarei na Universidade de Princeton a convite da [ativista negra norte-americana] Angela Davis, que a Marielle idolatrava, a assinalar a data e a homenageá-la. O nome da última iniciativa em que ela participou, Jovens Negras Abalando as Estruturas, era até baseado numa frase da Angela. Estou contente não apenas pelo evento mas porque saio do Brasil: seria doloroso estar novamente aqui mas afastada dos ritos, das missas, das orações. Não poder ter dado ainda um abraço nos pais da Marielle ou na Ágata, a mulher do Anderson, é talvez o mais difícil.