Taurus foi punida nos EUA por armas defeituosas, mas o Brasil continua seu refém
A Taurus assinou no fim da semana passada um acordo final com autoridades norte-americanas para encerrar um processo milionário que corre nos EUA desde 2016. Quatro moradores da Flórida acusam a empresa e sua subsidiária no país de venderem – conscientemente – armas com defeito.
As ações, de autoria dos casais William e Oma Louise Burrow e Suzanne M. e Ernest D. Bedwell, foram unificadas e tem valor estimado entre 7,1 e 7,9 milhões de dólares – o equivalente a cerca de R$ 30 milhões. O acordo ainda precisa ser homologado pela justiça dos EUA.
No Brasil, a empresa, maior fabricante de armas da América Latina, vem sendo acusada há anos – e sem sucesso – de ser responsável por disparos acidentais que já deixaram ao menos 50 mortos. Então, temos a seguinte situação: os defeitos da Taurus já foram reconhecidos nos EUA, mas aqui, onde a empresa goza de um monopólio, a justiça não chegou.
A exclusividade da empresa começou com o decreto R-105, assinado em 1965 por Castello Branco e atualizado em 2000 por Fernando Henrique Cardoso, que estabeleceu a regulamentação para a fiscalização de produtos controlados.
O texto determina que “o produto controlado que estiver sendo fabricado no país, por indústria considerada de valor estratégico pelo Exército, terá sua importação negada ou restringida”. Em suma: uma arma só pode ser importada com autorização do Exército, que raramente fornece permissões e estabelece, na prática, o monopólio da Taurus sobre o mercado. O Brasil é refém de suas armas que disparam sozinhas.
Na ação, os Burrow narram que compraram um revólver modelo R-35102da marca Rossi, também fabricada pela Taurus, em 2012, para se proteger de coiotes que rondavam sua fazenda. Certo dia estavam tirando coisas do carro quando a arma caiu no chão e disparou.
A bala ricocheteou e atingiu Oma Louise no joelho. Eles afirmam na ação que “ambas as empresas [Taurus e sua subsidiária nos EUA] sabidamente e negligentemente designaram, manufaturam, distribuíram e venderam um tipo de revólver com mecanismos de seguranças que eram defeituosos”.
No caso Bedwell, ocorreu algo semelhante. Em fevereiro de 2015, Suzanne foi às compras com seu filho em Palmer, no Alaska. Quando foram estacionar o carro, a arma, também da marca Rossi, mas modelo .357 Magnum, caiu do coldre e atingiu a perna esquerda de seu filho. Policiais chamados à cena do disparo testaram a arma e disseram que “o teste alegadamente resultou em um disparo não intencional da arma”.
A Taurus se defendeu tentando provar um conflito entre leis e tribunais internacionais – para evitar o processo nos EUA –, mas a tese não foi aceita pela corte, que citou como jurisprudência o caso de uma queda de avião ocorrida em 1987, nos EUA. O avião era francês, e a justiça americana aceitou o processo em seu território.
Há ainda um outro processo semelhante correndo na justiça norte-americana. O autor principal da ação coletiva, Chris Carter, um vice-xerife em Scott County – também na Flórida –, diz que em 29 de julho de 2013, enquanto perseguia um “suspeito em fuga”, sua pistola PRO PT-140 Millennium caiu do coldre e, ao atingir o chão, disparou e acertou um carro que estava estacionado e que, por sorte, estava vazio.
O caso ainda corre na justiça, mas a empresa já suspendeu a produção de nove modelos de armas nos EUA, dentre eles alguns que continuam a ser usadas por policiais brasileiros.
Procurada, a Taurus não respondeu quais dos modelos suspensos nos EUA ainda são fabricados no Brasil e em que quantidade. Mas policiais militares do Rio Grande do Norte, Brasília, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais me disseram que tem acesso – institucional ou particularmente – ao menos aos modelos de pistolas PT 24/7 e PT-640.
Em 2015, nos EUA, quase um milhão de clientes fizeram acordo judicial para devolver ou trocar suas armas, dentre elas o modelo PT-24/7, uma das mais utilizadas pelas polícias militares brasileiras. A produção e a comercialização das pistolas deste modelo está proibida pelo exército desde o fim de 2016, mas as armas já no mercado não foram recolhidas.
O PM goiano Alexandre Fernandes de Castro veio a público em 2016 afirmar que foi ferido na perna quando sua arma caiu no chão e disparou sozinha, em 2013. O acidente deixou sequelas, e Castro usa cadeira de rodas hoje.
Mesmo assim, ele percorreu os corredores da Câmara para coletar assinaturas para a abrir a CPI da Taurus. Na época ele me disse que o intuito era apurar os acidentes e também pedir mudanças na legislação. “Luto para que outros não fiquem igual a mim e pelos direitos das que morreram ou ficaram sequelados.
Não posso sequer ter uma vida comum. Tenho um filho de 4 anos e não posso brincar com ele porque não posso ficar muito tempo em uma mesma posição. Minha perna dói e fica inchada”, lamentou.
A CPI naufragou. O hoje senador Major Olímpio, do PSL, então relator da proposta na Câmara dos Deputados, disse que um lobby forte da Taurus fez com que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, “entendesse que não havia relevância nacional apurar armas que disparam sozinhas e que mataram e feriram policiais”. “Uma coisa horrorosa”, afirmou à época.
Depois da audiência pública na qual Alexandre e policiais do país inteiro participaram em 2016, a Taurus se mexeu. “O efeito positivo destas movimentações [audiência e pedido da CPI] foi fazer a Taurus começar a procurar as vítimas e tentar fazer uma negociação individual”, explicou Olimpio, se referindo ao extinto grupo chamado “vítimas da Taurus”, que tinha website, perfis no Twitter e Facebook – todos desativados no início de 2017. Apurei que isso foi uma condição expressa, atrelada a uma cláusula de confidencialidade do acordo proposto pela empresa, que não retornou nossos contatos para comentar o assunto.
Olímpio disse ainda que uma nova tentativa de abrir a CPI da Taurus “seria mais difícil ainda porque, depois do recolhimento de lotes que deram problema, diminuiu realmente o número acidentes”.
Por isso, ele disse também que não haverá problemas para a população civil beneficiada pela flexibilização da posse de armas, assinada em meados de janeiro, principalmente porque “as armas que deram verdadeiramente problema foram as .40″, – restritas às forças policiais e categorias específicas.
Mas não é bem assim. Segundo a procuradora da república em Sergipe, Lívia Tinoco, responsável por uma ação na justiça que pede a quebra de monopólio da empresa e o recolhimento de 10 modelos de armamento produzidos pela empresa, ainda há “inúmeros lotes com defeito ainda em circulação”.
“Nunca houve recall e há novos modelos da Taurus dando problema”, diz. “Considero que junto com a flexibilização, deveria ter havido a quebra de monopólio para proteger a sociedade brasileira.”
Ainda nessa esteira, o senador Flávio Bolsonaro, também do PSL, apresentou projeto que autoriza instalação de fábricas de armas no país e que veda condição que hoje restringe participação de empresas estrangeiras em licitações. O mercado de armas está aquecido e a disputa não será pequena.
As demandas levantadas por Olimpio e pelas vítimas dos disparos acidentais já são de conhecimento do Exército, do Ministério da Justiça, de Ministérios Públicos e de governos estaduais há anos. Em outubro de 2016, quando publiquei uma reportagem contando sobre as mortes causadas pelas armas defeituosas da empresa e o lobby que leva essas situações a serem escondidas, o Exército afirmou, sem entrar em detalhes, que dentre as sanções aplicadas à Taurus estão o impedimento de fabricar e comercializar as armas sob investigação, a ampliação dos recalls e a instauração de um processo administrativo. Na época, a Taurus respondeu que jamais foi comunicada a respeito das sanções. A abertura da CPI da Taurus foi arquivada em janeiro de 2017.
O líder do PSL do senado é ainda testemunha de acusação em uma ação proposta pelo Ministério Público Federal de Sergipe. Segundo investigação, a baixa qualidade das armas tem causado danos físicos e perdas de vidas humanas no Brasil. Pela gravidade da situação, o MP-SE pede indenização por dano moral coletivo em valor igual ou superior a R$ 40 milhões.
Os procuradores querem ainda a quebra do monopólio e a retirada de obstáculos à importação de armamento e munições no Brasil, bem como que a justiça obrigue a Taurus a fazer o recall de dez modelos de armas que apresentaram defeitos recorrentes. A Taurus recorreu e a ação está na fase de ouvir testemunhas. Por ser parlamentar, Major Olímpio tem a prerrogativa de marcar seu próprio depoimento, o que ainda não foi feito.
Do The Intercept