Carnaval, samba, Mangueira e a luta pela memória, verdade e justiça

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Leia o texto de  João Ricardo Dornelles, professor do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio; Coordenador-Geral do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio.

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Existem momentos em que a história acelera o seu ritmo.

Como uma bateria de escola de samba, a história do Brasil acelerou a seu ritmo, com paradinhas, com intensidades maiores ou menores. Acelerou o ritmo a partir da Constituição de 1988, que reconheceu direitos até então desconhecidos do povo brasileiro, como o direito a uma saúde pública e universal, através do SUS, as políticas afirmativas em relação à população negra, indígena, os direitos das mulheres, dentre outros direitos.

Mas também acelerou seu ritmo, aos solavancos, quando foram criadas a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Anistia e, muito tardiamente, a Comissão Nacional da Verdade, juntamente com uma série de comissões estaduais e setoriais da verdade.

Acelerou com a Lei Maria da Penha, com os direitos da população negra, indígena, da comunidade LGBT etc. Acelerou muito com a saída do Brasil do Mapa da Fome da FAO/ONU, da retirada de cerca de 40 milhões de brasileiros da condição de miséria etc. Acelerou com políticas públicas que possibilitaram viver o sonho de um país mais justo, mais igual, mais plural, diverso, solidário e democrático.

Mas a história não acelera apenas no sentido da ampliação de direitos e de liberdades democráticas. Por vezes, a história empaca, como uma bateria de escola de samba que atravessa na avenida e não existe mais harmonia entre o samba cantado, os instrumentos tocados e os passistas sambando.

Além de “atravessar na avenida”, a consequência é que, por vezes, a história acelera no sentido contrário, de retrocessos de direitos e liberdades democráticas.

Temos assistido tais movimentos na história recente do Brasil, especialmente a partir de 2016 com o golpe que subverteu a ordem democrática e as conquistas sociais do povo brasileiro.  O ambiente que levou ao golpe e ao seu aprofundamento revelou o que existe de pior na sociedade brasileira. Mas atenção.

Não é nenhuma novidade. Nunca fomos um povo gentil, cordial, alegre, solidário, democrático, embora tenhamos sido formados acreditando nisso (“o povo brasileiro é o mais alegre, feliz e gentil do mundo”). Pura falácia.
Nossa história mostra muito bem os cinco séculos de um genocídio de gente pobre, negra, indígena e de todos os deserdados da terra.

O fascismo social brasileiro sempre esteve aqui, por vezes camuflado, às vezes envergonhado (nem sempre, é verdade). Na verdade um fascismo social fundado na colonialidade e no escravismo. A nossa especificidade de sociedade que articulou as barbáries pré-modernas do modelo colonial, com as barbáries modernas do capitalismo periférico e, por fim, com as novas barbáries das sociedades contemporâneas.

Uma sociedade que articula o aparato tecnológico da indústria cultural e a produção de um simulacro de realidade, através das Fake News, da pós-verdade, da pós-democracia, do pós-humanismo com todo o arsenal de violências diretas, sem sutileza, das sociedades coloniais.

Uma sociedade construída sobre o sofrimento, a dor, a violência e a morte. Construída sobre alicerces do genocídio indígena, a escravidão, os massacres, as ditaduras e os períodos de democracias oligárquicas. E tudo embalado pela ideologia da cordialidade, felicidade e alegria.

Os períodos realmente mais democráticos – como o segundo governo Vargas, o período entre JK e o golpe de 1964 – foram o ponto fora da curva, exceções que confirmam a regra dos mais de quinhentos anos de colonialidade, patriarcado, racismo, exclusão em massa e controle, vigilância e massacre dos mais pobres.

O grande moinho onde gente vira farinha, a enorme engrenagem de “moer gente”, como disse Darcy Ribeiro.

Pois bem, o carnaval de 2019 entrará para a história, talvez como uma aceleração no ritmo da bateria tocando em compasso harmonioso com o resto da escola. Entra na história como o carnaval da resistência, do NÃO à barbárie que elimina direitos sociais e mata jovens pobres, quase todos negros ou não brancos, pelas periferias, campos e florestas pelo país afora.

Resistência que se anuncia com o jeito brasileiro de ser, através da cultura, como obra de arte coletiva. Através do rechaço ao “presidente Fake News”, celebrador da ditadura e da tortura, através da crítica social e, significativamente, através das escolas de samba.

Duas delas se destacaram. Uma repetindo o ano anterior, a Paraíso do Tuiuti, mostrando que o rei está nu. A outra, Estação Primeira de Mangueira, a Verde-Rosa, que, “benjaminianamente”, visibiliza os silenciados da história. Como justiça anamnésica revela a verdade dos oprimidos, das vítimas, dos violentados, dos esquecidos da história.

Mostra os dois mundos que completam a realidade, a história dos vencidos e oprimidos, como um tsunami humano e social, aparecendo e desmontando as narrativas históricas dos vendedores.

Quantas Marielles, Chico Mendes, Dandaras, Marighellas, Olgas, Zumbis tiveram que morrer na história não contada do Brasil? Vozes silenciadas e invisíveis para a história dos vencedores, a história oficial.
Quantas(os) foram e ainda são humilhadas(os) e oprimidas(os)? Temos cerca de 800 mil pessoas encarceradas no “navio negreiro” do sistema penal.

Temos Lula preso, sem provas, com procedimentos extra-judiciais altamente discutíveis, vítima da guerra jurídica teleguiada pelo Império e operada por seus agentes locais. Guerra que tem como alvo as políticas públicas sociais, os direitos ampliados, a soberania nacional, as vozes que passaram a exigir mais direitos com seus corpos que ousaram ocupar os espaços antes apenas reservados aos senhores e senhoras das elites. Trata-se de uma guerra contra os pobres.

A Mangueira entrou na passarela do samba e deu um grito de basta, chega. Através da música, do tão brasileiro samba, do gingado, das evoluções, do colorido, mandou um recado para todo o Brasil e para o mundo.

O recado de que só é possível a paz com a verdade histórica, com o exercício contínuo da memória, com a construção de uma justiça em que as vozes oprimidas, desaparecidas, silenciadas e mortas apareçam para toda a sociedade.

A Mangueira deu aula de história, foi o exemplo vivo do que Boaventura de Sousa Santos chamou de “Sociologia das Ausências”.

A luta por Memoria, verdade e justiça no Brasil passa por muitos outros caminhos distintos dos percorridos em outras sociedades. Por caminhos que representam como o povo brasileiro se expressa. Com seus ritmos, suas formas de resistência e luta, suas cores, seus odores e seus sabores.

O impecável e emocionante desfile da Mangueira, e o seu belíssimo samba enredo, redimiu os milhões de brasileiros que foram esquecidos em toda a sua história.