Rosângela Serra Paraná foi uma das crianças roubadas por militares assim que nasceu
Rosângela Serra Paraná não sabe quantos anos tem ou onde nasceu. Sua certidão de nascimento, registrada em 1967 no Catete (Rio de Janeiro) e datada em 1º de outubro de 1963, é falsa. A maternidade no número 160 da Rua Marquês de Abrantes, no Flamengo, nunca existiu: o prédio pertence à autarquia de previdência dos servidores públicos desde 1958. O documento foi forjado pelo seu “avô”, o sargento do Exército Arcy de Paiva Paraná, que, assim que ela nasceu, tirou-a dos braços de sua mãe “prostituta” e entregou-a ao filho —o também militar Odyr de Paiva Paraná— e à nora, Nilza Serra Paraná, que não podia gerar crianças. É essa a história da sua vida, que ela só foi conhecer em 2013.
Rosângela foi criada como filha única em uma casa opulenta, com muitas joias e muitas festas, mas reservada. Os pais levavam-na e buscavam-na todos os dias a todos os lugares, e ela não tinha autorização para brincar na casa das amigas. Os parentes —tios, primos e um irmão mais velho de outra relação do pai— só a viam nas comemorações de aniversário. “Tudo parecia normal, só lembro que eu trocava muito de escola, não conseguia fazer amigos por muito tempo e tinha até dificuldade de aprendizado por conta disso”, conta ela ao EL PAÍS em um telefonema desde Curitiba, onde vive há mais de duas décadas com suas duas filhas, de 26 e 32 anos. Fonoaudióloga aposentada, ela também lembra da rotina rígida a que era submetida. Conta que a avó costumava dizer que ela era “nojenta” e “só servia para dar trabalho”. “Às vezes, até se eu respirasse de um jeito que incomodasse, era repreendida e apanhava. Urinei na cama até os 14 anos, de tanto medo que eu tinha de fazer alguma coisa errada”.
Ela só descobriu que aquela não era sua família 17 anos depois da morte do casal que a criou, em uma discussão com uma prima distante, que enviou-lhe uma mensagem pelo Facebook. “Ela me disse que eu deveria ser muito grata às famílias Serra Paraná por terem me salvado de ser criada por uma mãe prostituta”, conta. Depois da briga, Rosângela procurou uma das tias, que confirmou a história: seu pai biológico, de acordo com a família, era um “baderneiro” que estava preso e a mãe, uma moça “jovem e muito bonita”. Sua data de aniversário foi convenientemente marcada como sendo no início de outubro como uma homenagem a essa tia que nasceu no mesmo dia.
Até hoje, isso é tudo o que lhe contaram. Há cinco anos Rosângela procura pistas sobre os progenitores em grupos de pessoas desaparecidas durante a ditadura. As pessoas da família que a criou não retornam seus telefonemas e mudaram de endereço para não serem contatados por ela. “Parece que há um pacto entre eles para que não se fale na minha história”, lamenta.
Apesar da distância com os Serra Paraná, ela diz ter amado Odyr e Nilza, que faleceram em 1994 e 1996, respectivamente. Chegou a cuidar da mãe adotiva em sua casa, durante os anos finais da doença que a fez sucumbir. “Eles eram tudo o que eu tinha e eu era tudo o que eles tinham, então sempre me procuravam quando precisavam de algo. De minha parte, era amor, mas hoje penso que talvez para eles fosse só obrigação”.
Rosângela, que casou jovem, por volta dos 16 anos, conta que o marido — de quem está separada e com quem se mudou do Rio de Janeiro para o Paraná — é advogado e sempre suspeitou dos segredos da família. “Ele foi a primeira pessoa, antes que eu sequer imaginasse qualquer coisa, que levantou a possibilidade de que eu fosse adotada. Sempre comentava o pouco que me parecia fisicamente com todos da família e como sempre me trataram com distância e hostilidade”. Sempre que ela tentava comentar as suspeitas do marido com Nilza, a mãe adotiva fazia “chantagem emocional”, segundo conta. “Me dizia que eu não a amava, me pedia para terminar meu casamento”.
Rosângela é uma das (pelo menos) 19 crianças que foram sequestradas e adotadas ilegalmente por famílias de militares ou de pessoas ligadas às Forças Armadas durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), segundo a investigação do jornalista Eduardo Reina, que se debruçou sobre o assunto ao longo de 20 anos. Nessas duas décadas, Reina percorreu mais de 20.000 quilômetros em território brasileiro em busca das vítimas e acessando milhares de documentos militares, oficiais ou secretos, além de consultar mais de uma centena de livros e quatro mil edições de jornais sobre o tema. Reina reuniu essas histórias no livro Cativeiro Sem Fim (Editora Alameda), que será lançado no dia 2 de abril, em parceria com o Instituto Vladimir Herzog.
O jornalista considera que o caso de Rosângela, que ele acredita ter nascido no Rio Grande do Sul ou no Rio de Janeiro, representa o modus operandi da apropriação de bebês e crianças filhas de “dissidentes” na época. “Na maioria dos casos, as pegavam assim que nasciam, uma prática comum às ditaduras na Argentina ou no Chile, por exemplo”, explica o jornalista.
Depois de comprovar a falsidade de sua certidão de nascimento —inclusive em uma segunda cópia na qual aparece como “filha ilegítima”—, Rosângela encontrou algumas outras peças do seu quebra-cabeça pessoal. “Achei fotos minhas de quando era muito pequena, vestida de menino e com a cabeça raspada. Demorei a aceitar que tudo podia ser uma mentira, mas fui ligando os pontos… o fato de nunca ficar na mesma escola, o isolamento… A ditadura roubou minha identidade, entrei em depressão depois disso”, lamenta, emocionada.
Sobrevivente de um câncer, ela persistiu na busca pela família biológica mesmo quando convalescia e recebia ameaças. “Recebia mensagens e ligações de números anônimos advertindo-me para deixar de fazer questionamentos. Me sentia muito sozinha, tentei pedir para minhas tias mais informações, porque queria ter uma família que me apoiasse naquele momento, mas foi inútil. Ambas famílias sabiam de tudo, mas nunca me falaram nada, nem quando viajei ao Rio de Janeiro para implorar que dissessem algo”, relata. Hoje, ela diz viver com medo de esbarrar em senhoras na rua, porque sempre imagina que uma delas poderia ser sua mãe. “Nem quero vingança, só quero saber o que fizeram com eles. Quero saber se tenho irmãos, se tenho uma família, ou pelo menos um túmulo onde depositar flores e chorar sua morte”.
Crime imprescritível
O sequestro de crianças é um crime que não prescreve. Por isso, quiçá, trata-se de um dos segredos menos comentados da história da ditadura brasileira. O próprio relatório final da Comissão da Verdade menciona apenas a possibilidade de existência de casos como esse no Araguaia, mas sem aprofundar-se no assunto. Onze das histórias encontradas por Eduardo Reina estão relacionadas ao sequestro de filhos de guerrilheiros e camponeses ligados à guerrilha do Araguaia, movimento de oposição ao regime que ocorreu entre o final da década de 1960 e 1974, na Amazônia.
Juracy Bezerra de Oliveira foi um deles. Aos seis anos, foi confundido por militares como o filho de um líder guerrilheiro —as semelhanças eram o primeiro nome da mãe biológica, Maria, a idade aproximada e a tez morena— e levado a Fortaleza pelo tenente Antônio Essilio Azevedo Costa, que o registrou em cartório como seu pai biológico. Aos 20 anos, Juracy voltou ao Araguaia em busca da mãe e descobriu que o irmão mais novo, Miracy, havia sido levado pelo militar. Jamais se reencontraram. “Essa é a mágoa que tenho deles, de terem me tirado da minha família”, relata Juracy em Cativeiro Sem Fim.
O livro —que é um grande documento investigativo sobre um capítulo até hoje invisível da ditadura brasileira— também relata as histórias de José Vieira, Antônio José da Silva, José Wilson de Brito Feitosa, José de Ribamar, Osniel Ferreira da Cruz e Sebastião de Santana, adolescentes filhos de camponeses da região onde foram presos e enviados a quartéis entre o fim de 1973 e o início de 1974.
José Vieira, filho de Luiz Vieira, agricultor que foi assassinado por militares durante a guerra no Araguaia, foi capturado em 1974. Seu nome está registrado no Centro de Informações do Exército (CIE). Os documentos reunidos por Eduardo Reina comprovam que, inicialmente, o jovem foi preso e torturado na base Bacaba, a 68 quilômetros rodovia Transamazônica. Depois, foi levado para o quartel general do Exército em Belém do Pará (onde esteve por um mês e 12 dias), até ser transferido para Altamira, onde acabou forçosamente incorporado às Forças Armadas. Tornou-se oficialmente soldado em 5 de março de 1975 e serviu no 51º Batalhão de Infantaria de Selva, conforme seu certificado de reservista.
“Esses casos podem ser só a ponta de um iceberg”, diz Reina que, antes de começar a editar a publicação, entregou todas as provas às quais teve acesso (inclusive os documentos secretos) ao Ministério Público Federal. De momento, nenhuma investigação foi aberta.
O jornalista conta que, em uma semana de divulgação do livro, outras 14 pessoas procuraram-no com suspeitas de haver passado por algo parecido. Ele começou a investigar os sequestros quando surgiram as primeiras histórias de apropriação de crianças pelas ditaduras chilena e argentina. “Não me parecia possível que não houvesse algo parecido no Brasil”. Depois de décadas de trabalho sobre o tema, Reina descobriu um manual de militares argentinos sobre o que deveria ser feito com os filhos pequenos de “revolucionários”: crianças com até quatro anos ainda eram consideradas “puras”, livres da ideologias dos pais, e deveriam ser entregues a boas famílias que as cuidassem. Aquelas acima dessa idade deveriam morrer. “Foi exatamente isso que aconteceu no Araguaia, por exemplo”, relata.
Tanto Eduardo Reina quanto o EL PAÍS procuraram as autoridades das Forças Armadas que não quiseram manifestar-se sobre a investigação acerca dos que tiveram parte de suas identidades roubadas pela ditadura e que vivem presos a um passado ainda desconhecido.
Do El País