Moro e TRF-4 divergem sobre o que seria uma prova robusta
Nas redes sociais, Aury Lopes Jr. rebateu, e o fez muito bem, as críticas daqueles que pedem por “estatísticas” de condenações injustas/juridicamente equivocadas — voltarei a essa (não-)dicotomia depois — no Brasil. Aliás, acrescento que, no Brasil, estatísticas funcionam assim: dou um tiro no pato e erro por um metro à esquerda; dou outro tiro e erro à direita. Na média, matei o glorioso onívoro Cairina Moschata.
Sigo. Primeiro, Aury disse suspeitar que não há um estudo desses pelo “impacto colossal na política de banalização da prisão preventiva”. Bingo, Aury. Vou além: as estatísticas, as tabelinhas, os números, no Direito, parecem interessar somente às análises econômicas (também conhecidas como direito tributário para ricos). Não existe AED para a patuleia. A malta não cabe no Excel.
Sigamos. Aury disse que, mesmo assim, entre muitos outros, cruzou com um caso específico; paradigmático, arquetípico do punitivismo ad hoc que se instalou no Brasil. Trago texto da ConJur à época, assinada por Pedro Canário:
Em julgamento de apelação contra as penas relacionadas à operação “lava jato”, a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região reformou integralmente a sentença da primeira instância que condenou executivos da construtora OAS por corrupção e lavagem de dinheiro. O julgamento havia começado em junho e foi concluído na quarta-feira (23/11) depois de voto-vista do desembargador Victor Laus.
Pois é. Um dos réus foi condenado a 11 anos de prisão com base naquilo que o ex-juiz Sergio Moro considerou “prova robusta” (sic). Depois — isto é, depois de nove meses preso, depois de perder o nascimento de uma filha, depois de perder o próprio casamento por um divórcio —, o mesmo réu condenado por “prova robusta” foi então… absolvido. Por quê? Por… falta de provas. E ficou nove meses preso.
Pois é. E esse ainda foi absolvido. Quantos não o são? Não sabemos ao certo. Por quê? Claro. Não há estatística definitiva, confiável. Porque a malta não cabe no Excel. Como já falei aqui várias vezes, cerca de 80% dos processos de primeiro vinham bichados, aos tempos em que fui procurador de Justiça. Dava um trabalhão tentar consertar condenações feitas com prova ilícita, “prova robusta”, falta de laudos, laudos ilegais feitos por despachantes de trânsito e quejandos, sem considerar a inversão do ônus probatório, coisa então normal (até hoje). Cheguei a pegar coisas como “advogado confessou pelo réu”, “tentativa de suicídio com o pobre diabo processado por porte ilegal de arma”, “prisão preventiva por furto”, etc.
Pois bem. Ainda que a malta coubesse no Excel, ainda que o malabarismo tabelístico-numérico diga que “as absolvições são obtidas em apenas 0,035% dos casos”; daí se segue que os réus têm “chances irrisórias” de reverter suas condenações? “Ah, é só zero-zero-trinta-e-cinco…” E se fosse você?
Porque o ponto é exatamente esse: ainda que a estatística seja baixa (não é; estou dando o argumento de barato). Não vem ao caso. Porque o Direito não é uma questão utilitarista.
Até imagino o sujeito de terno Calvin Klein, gel no cabelo, gravata italiana, chave do Audi na mão, dizendo que os números (ah, sempre os números…) dizem que há mais culpados presos (imagina se fosse o contrário!), e que por isso o punitivismo vale a pena. Porque é eficiente, então, veja bem, não se faz omelete sem quebrar alguns ovos…
Meus caros, o Direito existe exatamente para que não saiam por aí quebrando ovos a troco de nada. Liberdade e ovos são coisas frágeis. Entendam: ainda que os numerólogos tivessem razão — não têm —, eles não teriam razão. Se eles estão certos, estão errados. Porque, em Direito, não se escolhe; não se faz cálculo, não se pesa preferências, não se mede graus de eficiência. O Direito é uma questão de princípio. Direitos, em Direito, não são trunfos apenas contra as maiorias raivosas; são também trunfos contra esse utilitarismo ad hoc.
Perder o casamento e o nascimento na filha não entra no cálculo. Essa variável não cabe na fórmula e nem no Excel.
Porque os números são tão poderosos que, com eles, você faz qualquer coisa. E a fórmula é sempre ad hoc. Um pé nas brasas e um pé no gelo: temperatura média ótima…
O que me leva a outro ponto, bem ilustrado pelo caso lembrado por Aury. Para o juiz Moro, “prova robusta”; para o TRF, “ausência de provas”. Ora, tem algo errado aí, não? Esse é mais um símbolo do nosso fracasso. O Carnaval tem seus critérios para as escolas de samba… e o Direito não tem uma criteriologia mínima por meio da qual pode valorar as provas apresentadas em juízo. Já existe uma epistemologia para “medir” o carnaval. Mas ainda não sabemos o que é uma prova “robusta” ou “quando ela não existe ou é insuficiente”. Por que? Por causa do relativismo. Por causa do emotivismo, praga pela cada um dá a sua opinião. E por causa da ausência de constrangimentos externos aos “chutes epistêmicos”.
O que temos? Um Direito sem padrões e sem respeito aos próprios elementos que lhe constituem enquanto Direito legítimo. Ora, só podia dar nisso.
Somos uma sociedade cada vez mais marcada por desacordos. Nossos desacordos, por sua vez, cada vez mais marcados pela praga do emotivismo: é tudo questão de opinião, tudo é relativo. Inclusive a prova “robusta”. E aí, quando a democracia presenteia a nós com a instância adequada de resolução desses desacordos, surge a algaravia completa: emotivizamos o critério.
O resultado é isso. Um Direito capenga, sem epistemologia própria, sem uma criteriologia mínima, sem inteligibilidade e coerência consigo mesmo, sem uma teoria da decisão. Decide-se com base em qualquer coisa. Eficiência vira critério jurídico. Pragmatismo vira razão de decidir.
Chamemos as coisas pelos seus nomes e digamos o que se quer dizer. “Veja bem, só tantos pouquinhos por cento são absolvidos” é dizer “veja bem, é só a plebe que vai pra cadeia mesmo, então que se dane”. No caso, esse nem era da “malta”.
Na sequência, quando for possível, escreverei sobre “O que é isto — prova robusta” e “o que é isto — a prova robusta que se transformou em raquítica-ou-nenhuma”. O que é isto — a verdade no processo?
Do ConJur