Carnaval 2019 ridicularizou Bolsonaro e exigiu a volta de Lula

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Leia o artigo de Mino Carta, diretor de Redação de Carta Capital

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Protagonismo não coube ao presidente, mas ao seu refém

A tragédia familiar que atinge Lula amplia-se à desmesura na tragédia a se abater sobre o País. Nesta moldura ironicamente carnavalesca no único recanto do mundo onde o ano começa depois do reinado de Momo, o ex-presidente é o grande protagonista, a figura central, a vítima simbólica.

Como definir a condenação imposta pela Inquisição curitibana? É do conhecimento até do mundo mineral tratar-se de uma aberração, a desobediência deliberada a todos os valores e princípios consagrados do Direito. Precedida pela decisão prévia tomada em Washington e executada por dois dos seus mais prestimosos lacaios, Sérgio Moro e Deltan Dallagnol. Talvez se trate de agentes disfarçados da CIA.

Qual a razão da ojeriza de Tio Sam e do ódio da casa-grande? Lula não é marxista, comunista, vermelho. Chegou à Presidência cheio de dedos, como se acreditasse em alguma chance de conciliação.

Não conseguiu convencer os donos do poder lá de cima e os daqui de baixo ao dar passos importantes para tirar da miséria algumas dezenas de milhões de brasileiros e inaugurar, secundado pelo chanceler Celso Amorim, uma política exterior desvencilhada dos interesses de Washington, em proveito exclusivo daqueles do Brasil.

Voltasse ele à Presidência, o que se afigurava inevitável, de certo aprofundaria estas duas vertentes fundamentais da sua atuação. Tirá-lo de cena foi a solução.

A súbita presença de Lula nas ruas de São Bernardo, alquebrado pela dor e pelo longo tempo no cativeiro, moveria multidões em outro país saído faz séculos da Idade Média. Passou pelas páginas impressas, pelos microfones, pelos vídeos, como algo quase corriqueiro.

Uma notícia como tantas outras. Pergunto aos meus botões: e o PT? Cuidou de não convocar manifestações em respeito ao sofrimento de seu fundador. Os botões se insurgem, garibaldinos: medo de confusão, de enfrentamento, como é próprio de um sentimento a vincar a alma nativa.

E onde ficaram os petistas que aos milhares estacionaram dias a fio à volta do prédio do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e ao cabo acompanharam o líder até os camburões da polícia na noite de pesadelo de abril de 2018? E onde sumiram aqueles 89% da população que aprovaram o governo de Lula quando ele se despediu do Planalto?

Quantos deles hoje acreditam que ali está um vetusto larápio, como pretendem Bolsonaro e os filhos, e tantos outros frequentadores das famigeradas redes sociais, tão eficazes, tanto mais nestas plagas, para espalhar mentiras?

Até agora não sei se Lula, meu caríssimo amigo há 42 anos, se deu conta de que se tornou incômodo mesmo para seu partido, e não foi por acaso que Fernando Haddad, na reta final das eleições, se atirou a tecer o elogio a Sérgio Moro.

Mas o PT não causa surpresa, afunda como todas as demais agremiações políticas, na pasta víscida em que chafurdam, ou se deixam engolir pelas areias movediças da falsa cordialidade. Isso tudo adiou por dois séculos a única saída viável, a tomada da casa-grande.

Impossível, contudo: carecemos de lideranças determinantes e eventualmente desapiedadas, e da bucha de canhão, os sans-culottes, e, se uma esquerda houve, evaporou-se. Certa vez disse a Lula: você fez o que pôde para serenar os ânimos, chorou à beira do ataúde de Roberto Marinho, e ainda assim você e seu partido nunca terão acesso à mansão dos senhores, isto só se resolve com sangue nas calçadas. Ele riu, e retrucou: “Sabe que um velho amigo me disse certa vez que o sangue haveria de cobrir os nossos calcanhares”.

Registro, porém, algo que neste instante me abastece com um insólito alento: o Carnaval proporcionou aos cidadãos foliões espaço político nunca dantes navegado, com efeitos que se espraiam muito além do célebre desafio de Joãosinho Trinta à ditadura largas décadas atrás.

Bolsonaro foi o alvo e do Oiapoque ao Chuí ouviu-se o estribilho que o convidava a certo, tradicional exercício a significar ir ao diabo de forma vulgar, mas peremptória. Por outro lado, a festa estampou sobre os peitos a imagem de Lula, enquanto a invocação da liberação do ex-presidente preso ecoava pelas ruas.

O próprio Bolsonaro incumbiu-se de deflagrar seu carnaval dentro do Carnaval, e espantar o Brasil e o mundo com a inserção na rede social, fortemente apreciada por ele, de filmagens de extrema pornografia, a ponto de transformar as ofensas recebidas em litanias dos claustros.

Bolsonaro não hesitou em provar mais uma vez a sua incompatibilidade com o cargo que as eleições lhe conferiram para desnudar o engano cometido por quem lhe deu o voto.

Já me entreguei a inúmeras ilusões ao longo da vida. Ouso crer agora que o Carnaval de 2019 vai ficar na história como um sinal da irremediável insatisfação popular, a transcender a tibieza dos profissionais da política a impedir que, na contramão do passado, tudo acabasse na quarta-feira.

Se o enredo seguir a pauta tradicional, vale denunciar o risco enorme que o Brasil enfrenta, o de sofrer resignadamente o pior golpe já desferido, além de 1964 e 2016. O advento fatal do totalitarismo estatal. Como foram nazismo, bolchevismo e fascismo, e ainda o falangismo franquista e o salazarismo, enfim aniquilado pela Revolução dos Cravos.

Totalitário implica a interferência total e absoluta do Estado em todos os domínios, político, econômico, cultural, social. Neste exato sentido, vários passos já foram dados para concretizar o projeto totalitário, e outros, previamente definidos, são iminentes.

Caracterizaria o totalitarismo à brasileira a demência troglodita presente sobretudo no nazismo. Transparece amiúde no comportamento dos demais, e nada é pior do que a ditadura totalitária. O nosso, entretanto, haveria de pretender o retorno às cavernas.

O pensamento de Lula preso aperta meu coração e atiça minha revolta. Imaginá-lo naquele quarto sem janela de 25 metros quadrados, banheiro incluso, com a permissão de olhar o céu sem ver a terra, de um canil de concreto assume, para mim, a dimensão de uma imperdoável ofensa pessoal, sem negar todo o seu alcance, que abarca o País e a Razão.

Da Carta Capital